Jornal Estado de Minas

ENTREVISTA

'Nossa preocupação é com a erosão desse patrimônio', diz reitora da UFMG



Em meio a cortes de recursos no orçamento desde 2015, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) conquistou o topo do ranking nacional do ensino superior entre as instituições federais, elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação. Consideradas todas as instituições públicas, incluindo estaduais, municipais e institutos, a universidade mineira ultrapassa nomes de peso, como as federais do Rio de Janeiro (UFRJ) e de Brasília (UnB), também centros de excelência, e fica em quarto lugar. O Instituto Militar de Engenharia (IME) aparece em primeiro lugar, seguido da Unicamp e do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA).





O Estado de Minas conversou com a reitora Sandra Goulart para avaliar essa conquista, que ela credita, em parte, ao investimento da instituição em autoavaliação. Nesta entrevista, ela também abordou o avanço nas pesquisas para o desenvolvimento de uma vacina contra a COVID-19 com tecnologia 100% nacional. O estudo, liderado pelos pesquisadores do Centro de Tecnologia em Vacinas (CT Vacinas) para o desenvolvimento da candidata do tipo quimera proteica, está nos pré-testes clínicos. A previsão é de que seja possível iniciar os ensaios clínicos neste ano. Para tanto, a universidade precisa de R$ 30 milhões. A reitora afirmou que R$ 3 milhões já estão garantidos, por meio de emendas das deputadas estaduais Beatriz Cerqueira (PT) e Laura Serrano (Novo).
 
A reitora também conta com os compromissos firmados pelo prefeito Alexandre Kalil (PSD) de ajudar na obtenção da verba, e pelo presidente da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, deputado Agostinho Patrus (PV). Em audiência na Casa, o parlamentar afirmou que será apresentada emenda para que parte do acordo da Vale com o governo de Minas pela reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem da empresa em Brumadinho seja investida nessa pesquisa.

Sandra Goulart, nesta entrevista exclusiva, abordou também o retorno das aulas presenciais em uma universidade com uma comunidade maior que a população da maior parte dos municípios mineiros, e os temores frente aos prováveis impactos do corte orçamentário. “Vai impactar todos os espaços da vida acadêmica. A situação é muito séria e grave”, avaliou.





A UFMG sempre esteve entre as cinco primeiras melhores universidades do Brasil. O que fez com que ela alcançasse o primeiro lugar no ranking entre as federais, e a quarta considerando as estaduais, municipais e os institutos?
Ficamos muito felizes. Para nós é uma grande satisfação a UFMG ser reconhecida oficialmente. Vários rankings já demonstravam a UFMG como uma das melhores do Brasil, mas esse é o oficial do MEC e do Inep, que de fato colocam a UFMG como a melhor federal. Isso nos deixa muito felizes.

O que possibilitou que ela alcançasse esse primeiro lugar? A senhora destaca algum aspecto mais predominante?
Foi uma sucessão de ações que vêm sendo feitas na UFMG ao longo desses anos todos. Uma preocupação muito grande com a qualidade da instituição, a nossa graduação tem melhorado muito. Somos muito sérios na maneira de conduzir. Outra questão que influencia muito é que temos um processo de autoavaliação da instituição que é muito importante. Temos uma Diretoria de Avaliação Institucional, com uma comissão que cuida desses dados com muita seriedade. A universidade está sempre preocupada com a qualidade do ensino oferecido, tanto na graduação quanto na pós-graduação. Foi muito importante fazer esse processo de autoavaliação e procurar sempre melhorar cursos que já eram muito bons. A UFMG tem melhorado em várias áreas do conhecimento e também nos rankings internacionais, isso é importante. A instituição é muito séria, muito comprometida com a qualidade dos seus cursos e com a inclusão.

Essa autoavaliação é realizada desde quando, reitora?
Temos uma Diretoria de Avaliação Institucional concretizada desde os anos 2000. É um trabalho que tem sido feito com muita seriedade, de acompanhamento dos cursos, de avaliação da qualidade dos cursos oferecidos em termos da graduação. Em termos de pós-graduação, a UFMG está com um projeto de autoavaliação muito importante também. A pós-graduação já é avaliada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), mas a própria instituição está cuidando de item, traçando os rumos para a pós-graduação.





A UFMG tem uma posição destacada quando a gente fala do registro de patentes. A senhora pode dimensionar qual é a importância dessa posição para que a universidade alcance os primeiros lugares nos rankings?
As patentes são uma consequência de um trabalho sério de pesquisa feito na UFMG. A pesquisa tem impacto direto tanto na graduação, quanto na pós-graduação. Isso faz parte do que eu mencionei. Um todo da universidade que foi melhorando ao longo dos anos e que hoje colhe os frutos de toda essa qualidade e, entre eles, está incluída também a nossa inovação. Somos uma das instituições com mais registros de patentes, mais transferência de tecnologia. Isso impacta, de certa forma, na universidade, que é um produto da pesquisa que é aqui realizada. Um espaço de pesquisa bem-feito impacta a aula dada, a pós-graduação e o trabalho de extensão que fazemos junto à comunidade. A pesquisa, a busca por conhecimento, é o cerne de uma instituição de ensino superior.

A senhora se referiu à questão da inovação. A UFMG tem sete estudos em andamento para o desenvolvimento de uma vacina contra a COVID-19. A senhora acredita que uma vacina com tecnologia 100% nacional sairá de Minas?
Espero que sim. Estamos trabalhando para isso. É claro que torcemos principalmente para que saia a vacina de Minas Gerais e sabemos da importância de ter um imunizante brasileiro. Vamos precisar de todas as vacinas. Isso vai ser importantíssimo.  A UFMG precisa contribuir para a soberania nacional nesse campo, trabalhando arduamente para que consigamos produzir o mais rápido possível uma vacina com 100% de tecnologia mineira. O mais importante é garantir que tenhamos um número grande de vacinas produzidas no Brasil para atender toda a sua população.

Na reunião na Assembleia Legislativa, o presidente Agostinho Patrus (PV) falou de emenda do Legislativo para o repasse de R$ 30 milhões oriundos de parte do recurso do acordo da Vale com o governo de Minas. Está certo, reitora? Esse dinheiro vai chegar mesmo para desenvolver o ensaio clínico em 2021?
Estamos trabalhando em várias frentes. No momento, o que temos garantidas são duas emendas parlamentares: uma da deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT) e a outra da Laura Serrano (Novo). As duas estão repassando as emendas para a UFMG. Em outra frente, temos a Assembleia, que nos prometeu essa ajuda. Estamos aguardando negociações e encaminhamentos. Temos uma frente possível por meio da bancada mineira no Congresso Nacional. A gente espera conseguir. Temos o apoio da Prefeitura de Belo Horizonte. Estamos trabalhando num acordo de cooperação para que a PBH possa nos ajudar. O prefeito Kalil disse que não vai deixar a pesquisa parar. Essa é a nossa grande preocupação. Chegamos ao ponto de fazer os testes clínicos e não ter dinheiro para continuar. Esse é o nosso grande pavor. Vamos fazer, em 2021, os testes clínicos das fases 1 e 2, mas ainda tem, no início de 2022, a fase 3. Todo aporte financeiro será essencial nesse momento.





Com que recursos a universidade já conta neste momento?
Concretamente, temos duas emendas parlamentares. A deputada Laura Serrano designou R$ 2 milhões para a UFMG. A deputada Beatriz Cerqueira, R$ 1 milhão, então são R$ 3 milhões.

As universidades públicas perderam muitos recursos nos últimos cinco anos. Agora, com o anúncio do orçamento de 2021, vimos uma grande redução. Para o CNPq, por exemplo, o orçamento se manteve na faixa de R$ 1,2 bilhão em 2019 e 2020, mas cairá para R$ 560 milhões em 2021. O que esse corte representa? Isso vai ter impacto na UFMG?
Tivemos uma notícia boa e uma muito ruim na semana passada. A boa é que a UFMG é a melhor federal do país, e a ruim é que não conseguimos recompor o orçamento previsto de corte. A Lei Orçamentária Anual (LOA) previa corte de 18,9% no orçamento da UFMG, que equivaleria a quase R$ 40 milhões a menos no orçamento da UFMG. Trabalhamos muito para tentar recompor esse orçamento, mas, para nossa surpresa, ele não foi recomposto e fomos surpreendidos com a informação de que haverá mais cortes no MEC e também no Ministério de Ciência e Tecnologia. Isso é drástico. A situação é gravíssima. Para ter ideia, as sete vacinas em desenvolvimento na UFMG tiveram aporte financeiro do CNPq. Cortar dessa forma em agência de tanta importância para a pesquisa afeta o desenvolvimento do próprio país. Estamos vivendo um momento extremamente preocupante e drástico da nossa instituição. Isso significa que teremos mais cortes em cima dos 18,9%. Será maior que os R$ 40 milhões previstos. Não há como manter o funcionamento das universidades desta vez.

Esses cortes podem interferir nas cerca de 200 pesquisas em andamento na UFMG sobre a COVID-19?
Com certeza. Todas essas pesquisas receberam aporte financeiro do MEC e do MCTI, de várias outras agências da Capes, que lançaram edital para a COVID-19. Na ausência desses aportes, com certeza, haverá impacto em pesquisas em andamento. Essa é a nossa grande preocupação, além de impedir o funcionamento de nossas instituições. Um corte dessa monta vai prejudicar o ensino de graduação e pós-graduação, a pesquisa e a extensão. Ou seja, todo o funcionamento da universidade, a manutenção, essa é a verba que a gente recebe para pagar água, pagar luz, para limpeza, infraestrutura de laboratórios, para obras. Isso vai impactar todos os espaços da vida acadêmica. A situação é muito séria e grave.





A pandemia exigiu o formato remoto. De que maneira isso impactou no tripé ensino, pesquisa e extensão, pilares para a universidade?
Esse formato remoto foi feito em contexto de excepcionalidade. É claro que precisávamos retomar as aulas, não havia dúvida em relação a isso. Nos demandou muitos recursos para os estudantes que não tinham como se manter nessas aulas e também treinamento para todos os nossos professores, servidores e estudantes. Vem preencher a lacuna momentânea das aulas presenciais, mas não resta dúvida de que o ensino remoto não atende a todas as áreas. Afeta, sem dúvida alguma, o trabalho de campo, as aulas práticas exigidas por algumas áreas acadêmicas. Grande desafio que vamos enfrentar de agora para frente. Algumas aulas práticas puderam ser retomadas com a aprovação da prefeitura: os estágios na área da saúde.

Quais são as perspectivas agora?
Vamos iniciar o primeiro semestre de 2021 em 17 de maio, ainda de forma remota. Dependemos das circunstâncias sanitárias. Mas a nossa expectativa é que à medida que a pandemia esteja sob controle e também que a vacinação esteja mais ampliada, possamos retomar atividades práticas, atividades de campo, para que as pessoas possam se formar. Avaliamos com todo o cuidado e aguardamos para que a situação pandêmica esteja mais sob controle para que possamos avançar um pouco mais. A UFMG tem um plano de retorno com várias fases, chegamos até a fase 1, voltamos atividades práticas dentro do que era possível e dentro do limite de 20%, mas agora, com recrudescimento da pandemia, tivemos que voltar para a fase 0.

Não há nem previsão para retomar as aulas presenciais?
Para dar uma data, a gente precisa ter as condições sanitárias melhoradas. Ninguém sabe dizer se essas condições sanitárias vão se manter, se elas vão piorar ainda mais. Ninguém sabe dizer qual será o curso da pandemia. Assim que a situação estiver mais sob controle vamos retornar aos poucos de forma gradual e escalonada esse retorno às aulas presenciais. Começando sempre das aulas que não puderam ser dadas, as aulas práticas e de campo para quem ainda não conseguiu se formar. Temos um plano todo detalhado aguardando as condições pandêmicas para que a gente possa retomar esse modelo, primeiramente híbrido, e depois voltar à presencialidade.





Reitora, a senhora lidera uma universidade que tem uma população  e orçamento maiores que muitos municípios de Minas. Gostaria que a senhora me falasse se o fato de ser mulher de alguma forma interfere, positiva ou negativamente no trabalho. 
Primeiro é uma honra ser reitora da universidade e poder contribuir para que a universidade se fortaleça. Vejo isso como uma missão, como uma honra que me foi conferida pela comunidade universitária. Então, tenho um compromisso muito grande com nossa instituição. A UFMG tem um histórico de reitores e reitoras que tiveram um compromisso muito grande com a instituição. Eu sou a terceira mulher no cargo. As reitoras que me antecederam pavimentaram o caminho. Então, isso é muito importante, o fato de já termos tido outras mulheres. Eu digo sempre que para um homem chegar ao lugar de reitor as pessoas veem com naturalidade. Para a mulher chegar a essa posição como reitora, temos que trabalhar muito. A gente faz essa reflexão. A gente trabalha muito. Para você conseguir não é uma coisa natural, o que é chamado hoje em dia de teto de cristal. Você olha e não consegue chegar porque os empecilhos são muito grandes do ponto de vista material, simbólico, do ponto de vista geral da universidade. Temos que trabalhar muito e mostrar que somos capazes de levar uma instituição do porte da UFMG. Mas o fato de a UFMG ter tido duas excelentes reitoras que me antecederam nos motiva e nos dá força para seguir em frente.

Para encerrar, a senhora gostaria de pontuar alguma questão?
Somos um patrimônio do nosso país. Patrimônio de Minas. Muito orgulho estar nesta posição em momento de tanta luta, tanta dificuldade que temos vivido com esta pandemia. O que nos dá um alento é que a UFMG trabalhou muito e atendeu às demandas da comunidade. Esse reconhecimento é muito bem-vindo. Foi muito bom. Ao mesmo tempo, é um momento de grave preocupação, muita preocupação diante desses cortes orçamentários, diante do futuro de nossas instituições. Se chegamos até aqui, muitos nos antecederam, muitos reitores e reitoras fizeram desta universidade o patrimônio que ela é. Nossa preocupação é com a erosão desse patrimônio diante desses cortes orçamentários que se acumulam ao longo desses anos. Não é de agora. Tivemos cortes em 2015 e em 2019. Tivemos corte em cima de corte. Isso preocupa muito o futuro da universidade, o futuro da ciência e da tecnologia, da inovação e o futuro do país. Tudo isso existe para construir um país melhor, um país que dê melhores condições de vida à sua população.

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