Jornal Estado de Minas

Celular, vilão que virou queridinho nas aulas em tempos de COVID-19



Ele já foi o vilão da sala de aula. Afinal, qualquer professor já terá perdido a conta das vezes em que precisou pedir para alunos desligarem o celular. Agora, em tempos de isolamento social, o smartphone virou estrela: é ele que garante o acesso de boa parte dos estudantes ao conteúdo das aulas não presenciais. “Só tenho meu celular”, afirma a estudante do segundo ano do ensino médio Maria Clara dos Santos Silva, de 16 anos. Ela lembra que, no início, não conseguia assistir às aulas, porque o aplicativo da Secretaria de Estado da Educação não era compatível com o sistema operacional do aparelho. Somente há duas semanas o problema se resolveu.





Agora, o telefone, que antes podia ser fonte de distração, é que garante que a adolescente “entre” em sala. Mesmo assim, a relação não é de todo pacífica, e se um problema se resolveu, outros surgiram. “O ensino remoto é meio complicado. Temos muitas atividades para fazer e pouco tempo para entregar. O professor tem pouco contato com a gente. As aulas não têm nada a ver com as atividades”, avalia. Maria lembra que nas aulas presenciais, a figura do educador era essencial para manter a concentração. “Os professores deveriam entrar mais em contato com a gente”, sugere a estudante da Escola Estadual José Maria Bicalho, em Santa Luzia, na Grande BH.

Com tantas mudanças e dificuldades, o calendário se transformou em outro desafio. Ainda não há data fixada para que o semestre se encerre, e muitas escolas não descartam sequer que o atual ano letivo invada o calendário de 2021. A subsecretária de estado de Desenvolvimento da Educação Básica, Geniana Faria, afirma que o objetivo é que todo o conteúdo programático seja dado dentro da carga horária prevista.

“É um desafio imenso. Foi um tempo curto de preparação logística para nosso estado”, afirma Geniana Faria. Ela lembra que o ensino remoto é uma forma de garantir que o aluno manterá o vínculo com a escola, um jeito de “não perder esses estudantes”. Na semana passada, na rede estadual de ensino, tiveram início as atividades remotas do segundo volume dos programas de ensino a distância.





O material traz conteúdos e atividades que representam a continuidade do primeiro volume. Os programas já foram enviados a alunos e professores. Universidades mineiras auxiliaram no processo de revisão do volume 2. “O movimento do regime especial veio, na verdade, colocar no cenário desigualdades que já existiam. Ele não veio trazendo a desigualdade. Já estava posta. O que fez foi escancará-la”, afirma Geniana.

A subsecretária afirma que o material didático foi enviado por e-mail, está no aplicativo, no site e também foi impresso para alunos que têm dificuldade de acessar o ambiente digital. As aulas são transmitidas pela Rede Minas e pela TV Assembleia. Geniana considera que o desafio maior é fazer com que o formato remoto seja inclusivo e, por isso, a Secretaria da Educação oferece várias opções para que o aluno receba o material.

Universidades ajudam a “corrigir o trabalho”

 Depois de apontados os erros em diversos conteúdos produzidos para os alunos da rede estadual, a Secretaria de Estado de Educação estabeleceu parceria com as universidades para a revisão do conteúdo. Cada instituição apoiou na revisão do material por área do conhecimento: a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) fez a revisão de matemática; a Universidade Federal de Viçosa (UFV) ficou responsável pelos conteúdos de ciências humanas e linguagens; e a Unimontes fez a revisão dos conteúdos de ciências da natureza.





A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), a Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), o Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) e a Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg) também apoiam a Secretaria da Educação na revisão dos materiais e se somam a esse time para o volume 3.

Entrevista/Priscila Boy


Escritora, palestrante e diretora da Priscila Boy Consultoria

“Temos de celebrar, mas também temos de lamentar”

"As crianças menores têm mais dificuldade de concentração em longos períodos. Os adolescentes têm dificuldade em cumprir ordens" - Priscila Boy (foto: Arquivo Pessoal/Divulgação)
O ensino remoto veio a toque de caixa com a pandemia. Isso atrapalhou ou tornou a educação a distância uma realidade no século 21?
O aspecto positivo é que forçou a escola olhar para essa modalidade, que representa o futuro. O aspecto negativo é que isso foi feito sem planejamento. Não se muda um formato e faz migração para outro sem se planejar. A escola não tinha todas as ferramentas. Não tinha projeto pedagógico no formato remoto, que é diferente, assim como o tipo de aula. É diferente o tipo de atividade que se envia, as interações. Temos que celebrar a entrada neste mundo virtual, mas temos que lamentar que tenha sido dessa forma, porque isso fez com que fosse atrapalhada. Talvez alguns fiquem com imagem negativa do ensino remoto.

Qual a maior dificuldade para os alunos?
As crianças menores têm mais dificuldade de concentração em longos períodos. Quanto menores, mais inquietas e distraídas. Outra questão é não saber operar as ferramentas. Às vezes, elas ficam com os microfones abertos, ligam ou desligam a câmera. Não fazem alguma atividade de interação. Desconcentram-se muito fácil. Também há os danos potenciais para a saúde, pelo fato de a criança ficar exposta muito tempo à tela.





E para os adolescentes?
Para eles, as dificuldades operacionais são mais fáceis de negociar. O adolescente tem, teoricamente, uma autogestão. Mas têm dificuldade em cumprir ordens, vivem muito de tribo. Os meninos do ensino médio gostam de fazer uma gracinha, um comentário. Não têm muita disciplina com as coisas. Às vezes, assistem à aula deitados. E, por ser adolescente, a família já não dá tanto apoio a esse estudante. Ter disciplina, foco, rotina, autogestão se caracterizam como dificuldades. Às vezes, o aprendizado fica comprometido por causa dessa dispersão.

O que os professores podem fazer diante dessas dificuldades?
O professor tem de fazer malabarismo. E ele também foi pego de surpresa. Não é uma modalidade que a maioria domina. Para manter a atenção dos alunos, ele tem que promover interações. Se ele vai falar sobre a salinização da água no mar: “Quem já foi à praia?”. Fazer esse aluno estar sempre atento, porque sabe que o professor vai lançar uma pergunta, mas não perguntas de cunho cognitivo. São perguntas da vida dele. Isso vai trabalhar a dimensão socioemocional. “Quem já teve a oportunidade de comer gafanhoto? Alguém já foi à China? Vocês viram a reportagem? Os gafanhotos estão vindo para cá.” Ou seja, coisas que o aluno fique confortável de responder. Trazer um caso, um vídeo, uma reportagem da vida cotidiana. Os adolescentes gostam muito disso.

E o que os pais podem fazer para ajudar os filhos?
A maior ajuda é resguardar um ambiente tranquilo para a aula on-line. Às vezes, o aluno está tendo aula, alguém está fazendo café, cozinhando, batendo panela, a mãe está passando toda hora, o cachorro latindo... Os pais devem resguardar um lugar na casa e preservar o silêncio. Acompanhar, incentivar, não ficar falando mal da escola. O pai é quem vai dar o tom, a visão da escola para o aluno. Além de apoiador e incentivador, deve ter otimismo. “Ainda bem que a gente está tendo aula. Vamos organizar o horário, tomar um banho, pôr uma roupa bacana para o horário de aula.” É preciso incentivar o aluno a ter entusiasmo com o momento da aula remota.





 Em termos de aprendizado o que muda com o ensino remoto?
Nosso cérebro tem várias formas de aprender, recebe pistas. Estamos agora com uma nova modalidade, em que é preciso prestar atenção a um professor que está o tempo inteiro falando, o tempo inteiro mostrando coisas. Então, é preciso autogestão, ler e entender sozinho. Em relação à aprendizagem, o que muda é que vai estar muito ligada ao fato de o aluno ter dedicação e responsabilidade maior, se organizar. Isso envolve outras competências que não somente as cognitivas.

Como ter disciplina para estudar on-line?
É preciso ter planejamento tangível, escrito, físico. Organizar os horários de sua aula, fazer uma tabela com aquilo que mandou de português, de matemática... Pode organizar pastas virtuais por matéria. Para ter disciplina, é preciso “falar” para o cérebro que aquele momento é de estudo, e não de lazer. Também são pistas para o cérebro não assistir à aula de pijama ou deitado na cama. Se o aluno levantaria, tomaria um banho e colocaria roupa para ir à escola, por que não o faz em casa? E é preciso abrir a câmera. Os alunos não estão abrindo a câmara, com várias desculpas: “Estou com cabelo despenteado” ou “Estou sem camisa”. Se você está fisicamente pronto para ficar descansando, seu cérebro não vai entender que aquele é um momento de estudo.