Os estados quebraram. De novo. Em 1997, o governo federal foi obrigado a capitanear uma mega reestruturação da dívida dos entes federados, cujas finanças haviam colapsado com o fim da inflação (que reduzia as dívidas em termos reais).
A União assumiu e refinanciou a dívida de 25 estados e 180 municípios, reperfilando passivos que somavam cerca de 11,3% do PIB da época. O tamanho do resgate de 1997 decorreu da gravidade do problema: estados e municípios não tinham recursos sequer para pagar fornecedores no curto prazo e perderam a capacidade de custear sua folha, colocando em xeque os serviços públicos mais essenciais: policiamento, escolas, hospitais.
Sob o beneplácito dos tribunais de contas e assembleias legislativas, os estados cresceram suas despesas com pessoal em 31,58% em termos reais nos últimos sete anos. A LRF, que supostamente vedava um comprometimento com despesas de pessoal acima de 60% das receitas correntes dos estados, foi completamente atropelada.
Em 2017, por exemplo, Minas Gerais gastou quase 80% de tudo o que arrecadou apenas com despesas de pessoal. As previdências estaduais continuaram desequilibradas. Em 2017, os estados gastaram em média 16% de tudo o que arrecadaram apenas com servidores inativos. Como resultado, a dívida da maioria dos estados tornou-se extraordinariamente alta. O Rio de Janeiro hoje deve quase 300% (!) de tudo o que arrecada anualmente, e o Rio Grande do Sul deve mais de 200% de sua receita corrente.
O Tesouro Nacional considera que nada menos que 14 estados estão efetivamente insolventes e inúmeros municípios estão em situação igualmente dramática. Hoje, os estados devem cerca de R$ 1 trilhão.
Infelizmente, esses níveis alarmantes de endividamento reportados sequer dão conta da gravidade da situação. Por exemplo, todo o estoque de dívida judicial (os famosos precatórios) não entra nessa conta. Eles são parte, para a maioria dos estados e municípios, de um “regime especial” de pagamento que lhes dá um prazo até 2024 e não estão computados na dívida bruta consolidada reportada ao Tesouro Nacional.
É um segredo de polichinelo em Brasília que esse prazo, diferido outras vezes, continuará sendo postergado. Esses precatórios estaduais são “dívidas de segunda classe” e seu horizonte de pagamento é extremamente limitado.
Em suma: estados e municípios devem múltiplas vezes o que arrecadam e gastam todo ano mais do que recebem. Imagine uma empresa que devesse múltiplas vezes a receita anual e tivesse Ebitda negativo todo ano. Quem financiaria uma companhia assim? A resposta: ninguém.
Em um contexto de crise tão severa, já esperava que muitas ideias “criativas” fossem aventadas para solucionar a crise dos estados: atalhos e jeitinhos, qualquer coisa para não enfrentar o problema estrutural, as despesas inchadas com pessoal e os arranjos previdenciários falidos.
Em outubro passado, o STF parece ter validado a substituição do IPCA pela TR para a totalidade do passivo judicial da União, estados e municípios no período compreendido entre 2009 e 2015. A TR é uma taxa artificial criada durante o Plano Collor e que tem sido fixada arbitrariamente pelo governo federal desde então. Nos últimos dois anos, a TR foi estabelecida em 0%.
Na prática, isso significa que as dívidas deixam de ser corrigidas pela inflação durante todo esse período, implicando “desconto” médio de 48% no estoque devido pelos entes federados.
O inacreditável é que o próprio Supremo decidiu, há muito tempo, que toda e qualquer dívida tem de ser corrigida ao menos pela inflação. O que o Tribunal fez agora foi “modular os efeitos” daquela decisão – que reconhecera a ilegalidade do uso da TR – e dizer que o tratamento “correto” só vale daqui para frente.
A razão para tamanha ginástica: ajudar os estados e municípios, que estão quebrados. E, aproveitando a carona, estendendo os efeitos à União, que não tem (por enquanto) problema de solvência de precatórios e há anos utiliza o IPCA para atualizá-los. Em suma, o Supremo parece estar dando uma colher de chá para estados e municípios, autorizando um “calote legal” da ordem de 50% em uma dívida que em geral sequer está sendo paga.
Na quarta-feira, os ministros retomarão esse julgamento e decidirão se quem tem a receber do Estado deve ter seu crédito corrigido ou não pela inflação. Seria importante que nossos tribunais entendessem que não há atalho ou jeitinho para corrigir a situação fiscal dos entes federados. Brincar com o indexador das dívidas não resolve o problema da sustentabilidade das contas de estados e municípios – só cria insegurança jurídica e aumenta o custo do capital no Brasil.
A única maneira de salvar os entes federados é atacar sua estrutura de custos, a começar por um ajuste dramático nas previdências estaduais. Inevitavelmente esses ajustes terminarão no STF. E esta, sim, será a batalha jurídica crucial para o salvamento de governadores e governados.
Com nossos planos heterodoxos e intervenções econômicas desastradas, o Brasil até hoje sofre as consequências e distorções causadas por uma longa sucessão de economistas brincando com o direito. Na semana que vem, o Supremo pode mostrar que não brinca com a economia.
Daniel Goldberg é sócio-diretor da gestora de Investimentos Farallon Latin America. Foi presidente do Banco Morgan Stanley e secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça