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E o amargor me pôs ao avesso

Eu poderia ter feito uma narrativa glamourizada. Dizendo que havia sido atraído pelos odores mágicos


postado em 31/05/2019 04:06

 

Tio Bilu tinha ali perto de seus 70 anos. Menino, ouvira muito sobre ele. Amante inveterado de boleros. Carola. Celibatário. Namorador. Vidrado numa boa pinga. E consumidor vitalício de chás – dos amargos era que amava. Nossas vidas se cruzariam assim de um jeito um tanto prosaico, eu agora quase chegando aos 18. Ele no quarto dos fundos de casa, veio de lá aparentemente atraído pelo vapor da panelinha caseira de onde saía mais uma cerveja.

Entre uma e outra mexida na pá, surgiu com as narinas no ar em busca do suave adocicado do malte. O pescoço se alongando no vazio. Foram conversas curtas entre um velho e um meninão, até que, mais à frente, subiu o perfume avassalador do lúpulo. E ele finalmente se soltou:

– Arrastaria umas três na dança com uma fragrância dessa.

Para em seguida se recolher:

– Mas ando meio sem saber de belezuras, porque essa moléstia me pôs o mundo todo nublado.
A moléstia era a catarata que se abatera sobre ele. Viera justamente para que fosse operado. Aquilo pedia uma palavra de solidariedade.

– Mas vai se livrar dela logo, tio. E voltar a ver as coisas tão bem que vai poder até jogar de goleiro.
Disse e o chamei mais para perto do fogo, naquele maio em que a brisa da Serra do Curral já ensaiava o balé do inverno. Ele sempre falante, quis logo saber de namorada, faculdade... e cerveja.

– Como é que você foi esbarrar com esses panelões aí, essa coisa de cozinheiro sem avental?

Eu poderia ter feito uma narrativa glamourizada. Dizendo que havia sido atraído pelos odores mágicos. Ou que via significados emblemáticos na bebida como engenho civilizatório desde os sumérios, da riqueza monumental unindo culturas seculares... Mas não romantizei:

– Foi pra levantar um troco, tio.

Ele meio que se recolheu, num sinal velado de desapontamento.

– Mas me apaixonei perdidamente.

Vi o sorriso dele se abrindo como se houvesse me resgatado do purgatório. Daí, foi minha hora de ser tomado por uma arrebatadora surpresa.

– Se meu olho melhora, você pode me ensinar?

Foi assim tão espontâneo, num gesto quase menino, que inclinei o rosto para a serra, a que tio Bilu não percebesse minha comoção que beirava o choro. Enxuguei a borda das órbitas com as costas da mão, tentando dar um ar de naturalidade à situação. E mantive um silêncio cuidadoso. Receio de entabular uma frase infeliz qualquer. Mas, sem medir as palavras, abri todas as janelas de que ele parecia precisar.

– Ensino com toda a paciência do mundo. E com um orgulho imenso.

A cerveja já no freezer rumo à fermentação, os aparatos naquele processo de limpeza ritual, fui contando a ele sobre os ‘milagres’ da junção de água, fogo, malte, produção de açúcar, reação com a levedura, álcool... Se despediu feliz, como um aluno que forma as primeiras palavras na alfabetização, e combinamos de afinar o assunto no dia seguinte. Final da manhã, do quarto eu ouvia aquele festival de gargalhadas. Não paravam. Pulei da cama, o cabelo desgrenhado:

– Pai, mãe, o que tá rolando?

Era tio Bilu desatinado, num gargalho incontrolável.

Meu pai fazia sinal de não entender o desacerto do irmão.

– Não desgruda do copo desde as 9 nem para de falar que é o melhor chá de carqueja que sua mãe fez pra ele. Num amargor de apaixonar. Bebeu até a última gota e quer mais, mas acho que acabou.
Se era só isso...

– Ponho mais pra ele, é simples.

Abri a geladeira, puxei a bilha de carqueja de tio Bilu. Ué?! Cheia até o talo. E já emborcado, esgotado, meu growler de 3 litros, cor de cerâmica, que levava uma invejável double Ipa. Levava.

E tio Bilu flanando feito um passarinho pela casa. Ninguém haveria de quebrar aquele encanto. Puxou minha mãe para um bolero imaginário e bradou, como clamando ao garçom:

– Desce mais uma carqueja!!

Esta coluna é publicada quinzenalmente eduardomurta.mg@diariosassociados.com.br


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