(none) || (none)
UAI

Continue lendo os seus conteúdos favoritos.

Assine o Estado de Minas.

price

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Utilizamos tecnologia e segurança do Google para fazer a assinatura.

Assine agora o Estado de Minas por R$ 9,90/mês. ASSINE AGORA >>

Publicidade

Estado de Minas

Bebam essa canção por mim

Chegava a seu quinto ano cervejeiro sob o pacto de elaborar uma produção que fosse radicalmente fiel ao conceito artesanal


postado em 17/05/2019 05:05


Família, amigos, vizinhos, colegas de trabalho. Era praticamente consenso a imagem que faziam de Valf. Fosse resumir numa palavra, alternativo. E desde sempre. Menino, estava longe de ser como a maioria, preferindo mapear o céu – a ponto de saber a localização das estrelas – a brincar naquelas correrias de quarteirão. Adolescendo, renunciava aos churrascos familiares em nome de princípios vegetarianos. Jovem, dava preferência ao pedal em lugar das catracas de ônibus. Homem feito, vagara da solteirice militante à defesa do poliamor.

Agora quarentando, aparecia com aquela ondinha cervejeira.

– Ondinha é o cacete, palhaço!

À sombra dele, os mais próximos faziam suas apostas: não duraria seis meses. Erraram feio! Valf não só atravessara a fase de cervochato (chegou a levar a própria cerveja a festas alheias), como mergulhara nos experimentos e na literatura. Foi conhecendo, de uma ponta à outra, os variados estilos, a rica série de maltes, lúpulos e leveduras. Mais do que isso, fez a promessa de não se curvar à tentação do resultado fácil. Amava as intempéries.

Então, chegava a seu quinto ano cervejeiro sob o pacto de elaborar uma produção que fosse radicalmente fiel ao conceito artesanal. Experimentando as mais diferentes formas de ver o mundo (transitaria por ateísmo clássico, budismo, psicanálise lacaniana, niilismo), aprendera que a melhor maneira de compreender os dilemas era se pôr nu diante deles. E voltar à raiz era fórmula que dificilmente resultava em falha. Ainda que colhesse o imperfeito, serviria fundo para lições maduras.

Foi que, dezenas de receitas já testadas, resolveu partir para uma cuja originalidade raro seria questionada: uma Lambic. Opa, mas uma Lambic fora da Bélgica? Como assim? Tá bom, sabia sobre a reverência a Pajottenland, berço do estilo, respeitava, só que estava decidido. Fixou-seu intensamente nas pesquisas, ouviu pelo menos uns 10 conselheiros de alta patente, mas sem se abrir à hesitação. Dali firmou convicção cristalina: faria uma Lambic à mineira. Por que não? Ah, pequi não entraria...

A ideia indo e vindo dia e noite, como um limpador de para-brisas, resolveu ligar para o primo Sidão, na Serra do Cipó. Derivou dali um diálogo surreal:

– Mas o que mesmo cê quer fazer? Cerveja de alambique?!

– Ah, deixa pra lá. Te explico aí. Só separa aquela tina grande de madeira e os barris de amburana da cachaçaria do Dedé.

Tudo combinado, juntou os apetrechos, meteu malte e trigo na velha Rural e cruzou os morros. Foi pensando nas ervas da região que iriam conferir um perfil ainda mais rústico ao preparo. O coração se acelerando à medida que o ar era tomado pelo cheiro de gado, o odor ímpar do queijo. O riacho se esgueirando como uma serpente por entre a mata e o vale. E aquelas montanhas com um traçado inconfundível. Era o cenário perfeito.

Seguiu até dar com a porteira rangendo, a cachorrada vidrada no carro, ensandecida. Reencontrou geleias, requeijão moreno, a velha pinga. E traçou o script para o dia seguinte. Armou o cerco de pedra, a que o fogo se mantivesse em calor contínuo. Arranjou madeira de fôlego. O primo acompanhando tudo aquilo como se estivesse diante de um ET. Mas Sidão foi entrando no clima após a longa fervura. Meio que se sentiu noutro plano entre aquela bruma de vapor e a brisa dispersando a maré de lúpulo envelhecido, que lhe invadia as narinas como uma constelação de sabores.

Por um instante, imaginou Valf como um bruxo em poderes transformadores. Comandando ventos, voos de pássaros, o relógio do entardecer. Numa capacidade que parecia transcender o mundo dos mortais. Na contagem regressiva para as últimas gotas de suor cervejeiro, virou-se ao primo:

–  Já bebemos essa tal Lambic amanhã?

– Calma, calma, Sidão, respondeu, entre risos. Ela passa a noite no sereno, tina aberta, recebe as bênçãos das leveduras selvagens mineiras soltas por aí, do orvalho, dos grilos e das abelhas da fazenda... Depois, ajeito tudo nos barris.

– E bebericamos na semana que vem, pelo menos?

– Um pouquinho mais... tipo daqui a um ano.

Ele olhou embasbacado, uma pinta de frustração.

– Falaram que você era meio louco e tou começando a acreditar.

Valf deu de ombros. E pediu, mansamente, um favor final.

– Briga comigo não. Cuida bem das brejas aí. Ah, tou largando um vitrolão e uns 20 discos. Vai variando o repertório.
Sidão boquiaberto, o chapelão até retirado da cabeça, o primo sussurrou:

– Me disseram que elas adoram um autêntico rock rural.


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)