Jornal Estado de Minas

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

'Tiraram minha filha do nada', diz mãe de menina que foi à umbanda

Uma mãe foi impedida de ter contato com a filha depois de levá-la uma casa de umbanda. A situação ocorreu em Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, no dia 20 de maio e perdura há quase um mês, quando a 2ª Vara da Infância e Juventude da cidade determinou que a adolescente fique em um abrigo municipal.

 
A defesa da mãe informou que o pedido de afastamento foi feito pelo Ministério Público. O órgão propôs a retirada da guarda de filha, de 13 anos, em razão de ela ter feito um tratamento espiritual na umbanda. O MP argumenta que a mãe, Liliane dos Santos, de 38 anos, violou o direito da filha à liberdade religiosa.




 
A defesa da mãe, no entanto, destaca que o documento enviado ao  juiz contém afirmações que podem indicar ser um caso de intolerância religiosa: “a vítima demonstrou interesse em voltar a frequentar a igreja evangélica (sic), porém, foi impedida pela a mãe (sic)”. 
 
A reportagem entrou em contato com o Ministério Público de Minas Gerais, na manhã de terça-feira, antes de publicar a matéria. O órgão enviou uma nota, à tarde, informando que "há violação de direitos" e, por isso, a menina foi afastada da mãe.
 

'Tiraram minha filha do nada'

A diarista Liliane dos Santos também acredita que esteja sofrendo intolerância religiosa. Ela conta que tudo começou quando a filha foi para a Escola  Estadual João Lopes Gontijo, usando guias, colares de proteção dos orixás. "Tudo começou na escola. A direção que me denunciou para o Conselho Tutelar. A diretora me chamou para dizer que minha filha tinha que esconder as guias, que ninguém tinha que ficar vendo aquilo". 




 
Liliane recebeu uma convocação para que pudesse comparecer com a filha ao Conselho Tutelar no dia 20, às 8h. Segundo a diarista, neste encontro, ela foi acusada de maus-tratos à filha, as conselheiras não a deixaram falar e, ainda segundo Liliane, ela teria sido tratada como se tivesse cometido um crime. 
 
"Cheguei do serviço. Levei minha menina ao Conselho Tutelar e tomaram ela de mim. Não falaram para onde a levariam. Me deram um papel pequeno com endereço onde a menina está. Já me levaram para a delegacia para fazer boletim", relata.
 
Segundo a mãe, somente as conselheiras falaram: "elas falaram sozinha, como detentoras da lei, me desafiaram até o fim. Em minuto algum me deixaram falar. Eu não falei nada. Não deixou chamar ajuda de ninguém. Por elas, eu tinha ficado presa".



Liliane afirma que frequenta a umbanda há muito tempo e que a adolescente estava em tratamento espiritual, mas não havia nada que a colocasse em risco.
 
A diarista também contou que foi visitar a filha no abrigo, mas, no momento, ela está sem nenhuma comunicação com a filha. "Eles não atendem meu telefone mais, não respondem", diz.

A defesa da mãe informou que o boletim de ocorrência registrado por conselheiras tutelares, depois da denúncia da escola, menciona cicatrizes com características bem menos invasivas do que a circuncisão em crianças judias ou muçulmanas. No mesmo boletim, Liliane é acusada de sequestro e cárcere privado da própria filha. 
 
A reportagem entrou em contato com a Escola Estadual João Lopes Gontijo antes da publicação da matéria por telefone e e-mail, mas a escola não quis se posicionar sobre o caso. Em nota, a Secretaria de Estado da Educação informou que a família da adolescente foi chamada na escola para compreensão dos fatos. A nota afirma ainda que a criança "apresentava crises convulsivas e desmaios constantes na unidade de ensino." 

Pedido de reconsideração

O Instituto de defesa dos direitos das religiões afro-brasileiras (Idafro), representado pelo advogado Hédio Silva Jr., coordenador-executivo do órgão, entrou na Justiça com um pedido de reconsideração. O advogado destaca que o Ministério Público não apresentou nenhuma prova, baseando toda a argumentação na declaração da conselheira tutelar.




 
De acordo com Hédio, a conselheira não ouviu nem a adolescente nem a mãe e baseia a afirmação em um relato. "É um absurdo. Chama a atenção que uma das principais preocupações da conselheira é que a menina tinha vontande de ser evangélica e a mãe não permitia", informou.
 
O advogado defende que o vínculo familiar é considerado pelo direito constitucional como intocável. "A convivência entre pai e filho é intocavél", explica, acrescentando que esse vínculo só pode ser desfeito quando se trata de alguma coisa grave, quando a criança e o adolescente estão em situação de vulnerabilidade, violência e abuso. "Não há elementos nos autos que pode ser considrado prova", pondera.
  
A defesa afirma que, sem base em qualquer prova dos autos, o MP concluiu que Liliane concordou com práticas de lesões corporais na adolescente. "Não há exame de corpo de delito que comprove as referidas lesões", pontua o advogado.



A Lei Federal n. 12.288/10, do Estatuto da Igualdade Racial, afirma no artigo 24 que "O direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana compreende: I - a prática de cultos, a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade e a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados para tais fins.” 
 
A reportagem entrou em contato com o Conselho Tutelar de Justinópolis, na manhã de terça-feira (15/06), antes da publicação da matéria. Somente, à tarde, o órgão enviou uma nota afirmando que "houve desvirtuamento da realidade fática".  
 
Leia a nota na íntegra da Secretaria de Estado da Educação
 
"A Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE/MG) informa que a direção da Escola Estadual João Lopes Gontijo, de Ribeirão das Neves, acionou o Conselho Tutelar, em 18 de maio de 2022, ao constatar que a estudante P.P.S, de 13 anos, além de ter crises convulsivas e desmaios constantes na unidade de ensino, apresentava cortes e marcas na pele, em ambos os braços. 
 
Salientamos que a família foi chamada na escola para a compreensão do quadro e orientada quanto à necessidade de providenciar o acompanhamento médico necessário à adolescente. Diante da resistência da família em procurar atendimento à saúde da estudante, o que tem afetado também a sua rotina escolar, a supervisão da unidade de ensino seguiu legislação vigente em defesa da criança e do adolescente (artigo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente) e comunicou o fato ao Conselho Tutelar. A Superintendência Regional de Ensino Metropolitana C, responsável pela coordenação da unidade, está acompanhando o caso. 
 
A SEE repudia quaisquer atitudes e manifestações de discriminação e de preconceito e garante o tratamento igualitário a diferentes manifestações religiosas em ambiente escolar. A escola é um espaço sociocultural que deve respeitar e, sobretudo, discutir amplamente a pluralidade cultural, como uma forma de desconstruir preconceitos. 
 
Todas as providências tomadas a partir de então são de responsabilidade das autoridades competentes."