Jornal Estado de Minas

EU NÃO VOU SUCUMBIR!

'Ela não se quebrou. A história dela é a nossa', diz fundadora da Criola

A cantora Elza Soares, que morreu nesta quinta-feira (20/01) aos 91 anos, foi e seguirá como espelho. "Referência para as mulheres negras. Todas nós, para as que se movimentam, para as que não se movimentam", define Jurema Werneck, ativista feminista, médica, comunicóloga e co-fundadora da organização não governamental Criola, entidade voltada para a defesa dos direitos das mulheres negras.




 
Elza também foi orgulho de ser favela, jazzista, ou melhor, a voz de Deus - Deusa como cantou -, amplificou a voz de quem não tinha. Foi onça, como nos mostram os versos do poeta. Agora, volta para o orun, como ancestral. 
 
"A sociedade racista brasileira não queria reconhecer a existência das mulheres negras. A história dela é a nossa. Quem não viveu? Muitas gerações depois dela viveram tragédias. Nos identificamos na tragédia. Era nossa história", diz Jurema.
 
Um capítulo dessa história é marcado pela violência, a pobreza e a fome,  sofrimento causado pelo racismo e machismo no Brasil. No entanto, ela não se intimidou. Elza não ficou na tragédia. "Ela não se quebrou diante das forças de aniquilamento. Então esse também é um exemplo da gente. Ela mostrava que tem jeito de não quebrar".




 
E ela foi genial. "Existe uma parte da Elza que é só dela, a parte da gênia, talentosíssima. Estava acima de nós mulheres negras,  não só nós. Estava  acima de tudo. Era única".

Aos 91 anos, Elza cantava 'eu não vou sucumbir" e nada a fez perder altivez, nem o momento em que foi hostilizada publicamente no Brasil, tendo que ir para outro país, nem mesmo o problema na coluna. "Foram 91 anos de ela sendo potência, novidade e inovação". 
 
Júlia Tizumba interpretou Elza no musical que recebeu o nome da cantora . "Meu coração fica muito dividido. Um lado muito saudoso, de saber que não vamos mais conviver com essa mestra neste plano. Por outro lado, feliz de saber que ela fez a passagem em paz, sem dor, amparada como ela merecia". Júlia atuou no musical de 2018 a 2020, viajando o Brasil para contar a história de Elza. "Mais do que uma escola artística, é uma escola de vida, superação, resistência e positividade."  Júlia lembrou que Elza já se apresentou nos festejos do Tambor Mineiro, evento organizado por Maurício Tizumba.




 
Elza na Marquês de Sapucaí no desfile que a homenageou (foto: CARL DE SOUZA / AFP)
 

Orgulho de ser favela 

Elza estampou o orgulho de ser da favela. "Ela representa a potência da favela. Ela nunca deixou a favela. Em 2020, ela foi homenageada pela Mocidade com o samba "Deusa da Vila Vintém". Embora não tenha nascido na Vila Vintém, no Rio de Janeiro, assumiu a identidade do lugar.  Da favela saiu e não poderia deixar de inovar no samba, música que nasce nos morros. Foi uma das primeiras mulheres que inovou como intérprete, posição que era monopólio dos homens.

Voz na esfera pública

Elza ocupou a esfera pública por décadas, tornando-se referência para milhares de mulheres. "Elza foi presença pública. A gente fala de representatividade. Ela foi representatividade não só no sentido das fotos, canções ou do jeito maravilhoso como dançava. Ela foi representatividade inteira. Ela dizia. Existe essa gente. Ao mesmo tempo que ela cantava e dançava, a presença dela pública era uma narrativa, um discurso", pontua Jurema.

Elza ancestral

Na cosmogonia africana, os mais velhos seguem para o orun, um mundo espiritual de onde seguem como referência, como aponta a poeta e cientista política Júlia Elisa.
 
"No momento em que uma de nossas grandes pretas velhas fazem a passagem, algo me fisga em cheio com uma dose de agonia e gratidão, em relação ao tempo. O tempo de Elza bate como um marco do tempo de todas nós. Um suspiro comprido acontece, algo convoca, com ternura e tenacidade, em proporções equivalentes, a botar sentido no nosso destino", diz Júlia.




 
Júlia lembra que  Elza segue debandando a fartura num mundo de escassez. "Honrar essa terra batida, de pés não mais descalços, e traçar, com coragem, a continuidade da teia deste imenso legado, improvável e intransferível", completa a poeta.

Elza onça

O poeta e multiartista Ricardo Aleixo escreveu dois poemas para Elza, num dele a compara a uma onça. "Que tua Voz, que te ajudou a escapar do “planeta fome”, nos ajude a reensolarar a estrada até algum possível futuro para este país-pesadelo onde mais temos morrido que vivido. Somos Elza: onçaremos."

 

O poeta dimensiona o tamanho dela: "É imensa. No mínimo, tem o tamanho do Brasil que é também africano", diz. Ele destaca que a voz de Elza não só era uma expressão vocal, mas uma forma de intepretar o mundo - "voz pensadora"

 

O som do grave da voz de Elza era a voz de Deus. Aliás, ela ensinou que Deus é mulher. "Exemplo de mulher negra de garra e fé.  Lutou sempre para a garantia  dos direitos da classe artística. Rompeu os preconceitos de mulher negra. Assumiu a sua vida com dignidade", afirma  Jacira Silva do Coletivo de Mulheres Negras Baobá.
 

Rainha Onça

Por Ricardo Aleixo
 
Sou Elza.
Sou onça.
 
Canto 
sem pedir
licença.
 
Sou onça.
Sou Elza.
 
Eu onço
desde 
nascença 
 




audima