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Estado de Minas

Lei Maria da Penha e o casamento infantil


postado em 04/10/2019 04:00

Fabíola Sucasas Negrão Covas
Promotora de Justiça, assessora do Centro de Apoio Cível e de Tutela Coletiva, Núcleo Inclusão Social. Diretora do Ministério Público Democrático (MPD)

Viviana Santiago
Psicóloga, gerente de Gênero e Incidência Política da ONG Plan International Brasil

No artigo 7º, inciso III, da Lei 11.340/06, conhecida por Lei Maria da Penha, a violência sexual é entendida como qualquer conduta que constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força física. Outros exemplos são mencionados, como a conduta que force a mulher ao matrimônio.  Forçar ao matrimônio. Do quê exatamente estamos falando?

A Organização das Nações Unidas (ONU) usa o termo casamento prematuro, forçado e de crianças para definir casamento infantil. Precoce e prematuro já que o início da vida matrimonial concorre com outros direitos que devem ser garantidos; forçado porque é uma realidade que não advém de uma escolha, mas de uma desigualdade; de crianças porque, segundo a Convenção sobre os Direitos das Crianças, todo ser humano menor de 18 anos é considerado criança.

Aqui gostaríamos de acrescentar a possibilidade de olhar para esse fenômeno como algo que atinge exponencialmente a vida das meninas, e dessa forma nos somar aos esforços que nomeiam a situação de “meninas adolescentes em casamentos e uniões forçadas e precoces”.

Essa realidade pode parecer muito distante da brasileira, algo que eventualmente seja comum em países asiáticos ou africanos, ou algo que só acontecia no passado, mas não. Na América Latina, o Brasil está entre os cinco países com índices mais altos: Nicarágua, República Dominicana, Brasil, Honduras e México. Uma em cada quatro meninas da América Latina e Caribe se casa antes dos 18 anos. É o Brasil um dos países que mais contribuem para o retrato mundial do número de meninas esposas, agora estimado em 650 milhões.

Segundo o Banco Mundial, são cerca de 554 mil casamentos de meninas entre 10 a 17 anos por ano no Brasil, sendo mais de 65 mil delas com idades entre 10 e 14 anos. Na maior parte dos casos, são meninas que se casam ou se unem a homens mais experientes, com melhores condições econômicas e mais velhos, uma diferença média de 5 a 8 anos. São casamentos ou uniões heteroafetivas e, ao contrário do que muitos pensam, não é uma escolha, é uma violação aos direitos humanos.

As causas do casamento infantil são múltiplas e variam de contexto para contexto, embora seja possível perceber um fio condutor entre todas elas. Entre os motivos já mapeados estão a pobreza e a “lavagem” de honra da família pela perda da virgindade ou gravidez. Mas não é só. Identificamos meninas que expressam o desejo pelo matrimônio pois entendem como uma possibilidade de fugir de um lar violento, de poder viver mais sua liberdade e muitas ainda porque acreditam que com o casamento serão mais respeitadas pela comunidade. Todas essas justificativas expressam uma afronta, interdição e violação a acesso a direitos.

Daí advêm as mais variadas e perplexas – e naturalizadas – expressões de dominação masculina: a atribuição a uma incapacidade de esboçar opinião e pensamento, a subserviência aos cuidados de filhos e do lar às custas de riscos à saúde, o abandono escolar, exclusão ou precariedade no acesso ao mercado de trabalho, ou mesmo ao reforço do argumento do “sou seu dono”, decorrendo, pois, práticas que se encaixam perfeitamente naquelas formas de violência previstas na Lei Maria da Penha – psicológica, moral, patrimonial, física e sexual.

Implica-se deste quadro, por exemplo, a maior quantidade de gestações que as meninas adolescentes têm no período do casamento, uma vez que em muitos casos identificamos a gravidez e a interdição do uso de contraceptivos como estratégia utilizada por esses homens para manter as meninas no contexto do lar e sem convivência comunitária. E é importante ressaltar, quanto à gravidez na adolescência, que o risco de mortalidade materna é mais alto para adolescentes menores de 15 anos e o fato de que as complicações na gravidez e no parto são uma das principais causas de morte entre esse grupo em países em desenvolvimento. 

Nem é preciso descrever neste texto os ciclos da violência para compreender que, senão pelo já tão evidente cenário de que o próprio casamento (e união) é, em si, desde o seu nascimento ao seu desenvolvimento uma violação latente – e, pela Lei Maria da Penha, uma violência sexual –, aqui também um possível presságio: o feminicídio.  O Atlas da Violência de 2019 trouxe que, em 2017, 4.936 mulheres foram assassinadas

Estudos autorizam concluir que o histórico de violência é um fator de risco a assassinatos de mulheres, logo não se descarta que, se o casamento infantil tem como uma de suas consequências a maior incidência de violência doméstica e estupro conjugal, pode ser também uma realidade que antecede o feminicídio. A eliminação do casamento infantil, precoce e forçado, compõe a agenda 2030 da ONU para o desenvolvimento sustentável perante a igualdade de gênero; entrelaça-se também com outros esforços, como a erradicação da pobreza e o alcance da educação universal.

Entendemos a persistente invisibilidade do fenômeno como uma recusa em aceitação da dimensão de violência advinda de uma realidade que lhe é inerente, e do habitual gesto da sociedade de submeter meninas e mulheres à autoridade e poder de caráter “corretivo” concedido aos homens. É preciso muito mais para a eliminação do casamento infantil. O conjunto da sociedade precisa revisitar todas as dinâmicas que o naturalizam e o toleram.

É preciso atuar na promoção dos direitos das meninas e no acesso pleno aos seus direitos. Aos 13 anos da Lei Maria da Penha, nem sequer nela há a previsão, em suas diretrizes, da extirpação desta realidade. O fato é que, sem nenhuma evidência de progresso, resta a pergunta: do que serão nossas mulheres de amanhã?.


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