Jornal Estado de Minas

Banha de porco: por que quatro chefs preferem cozinhar com esta gordura


Banha de porco. Ingrediente que, ao longo da história, passou de popular a praticamente esquecido. Para levar mais sabor à comida, chefs têm resgatado o hábito de cozinhar com esta gordura animal. O seu uso hoje está muito relacionado a receitas típicas de Minas Gerais, como tropeiro e galinhada. Mas existem curiosas exceções, como arroz de polvo e hambúrguer.




 
A banha de porco está diretamente ligada à cultura mineira. Em um estado onde se produz e consome muita carne de porco, sempre foi comum o uso da gordura do animal na cozinha.
 
 
“A banha é um ingrediente importante para nós, não só como elemento de preparo, mas para a conservação de alimentos. Os tropeiros, que fazem parte da história da cozinha mineira, transportavam carne de porco, linguiça, às vezes feijão, em caixas de madeira com banha”, destaca a chef Juliana Duarte, do Cozinha Santo Antônio, que também é historiadora e se lembra bem da chegada dos óleos vegetais como algo revolucionário.

Os mineiros resgatam esse hábito num movimento de se reconectar com as suas origens. Em outros lugares do país, isso não é tão difundido. O chef carioca Zito Cavalcante, que abriu o Padú em Belo Horizonte, conta que, lá no Rio de Janeiro, não se usa banha de porco (ele se lembra apenas da avó, em Rio das Ostras, bem antigamente, fazendo biscoito com a gordura).
 

Questão cultural

Mariana Gontijo, do Roça Grande, defende o uso da banha de porco não só porque ela agrega sabor, aroma e textura à comida. Para a chef, que cresceu em Moema, no interior de Minas, vendo as mulheres da família cozinhando com uma lata da gordura ao lado do fogão, isso também envolve uma questão cultural. “Banha é a base da cozinha da roça. Vai da quitanda ao tutu”, aponta.




 
Representante da cozinha caipira em BH, Mariana Gontijo serve no Roça Grande carne de lata e feijão "gordo" (foto: Mariana Gontijo/Divulgação)
 
Quando era pequena, a chef via o avô matar porco no quintal de casa para ter carne e banha. “O cheiro da minha vida é de um tacho no fogão a lenha com toucinho para extrair a banha”, comenta. Parte da gordura era usada para preparar carne de lata e a outra parte para cozinhar.
 
Na faculdade, ela aprendeu a trabalhar com azeite, manteiga e óleo de soja. Mas não era o que imaginava para o Roça Grande. Como serve comida caipira, com técnicas e ingredientes mineiros ancestrais, prioriza a banha de porco. O consumo da gordura, que vem de Moema, chega a ser de 10kg por mês. Azeite entra no preparo de saladas e molhos mais leves. Já a manteiga está nas farofas.
 
Tutu é um dos pratos que têm que ser feitos com banha, na opinião de Mariana. “Isso é inegociável. A banha é responsável por parte do tempero, dá aquele sabor meio tostado, que vem da fritura do toucinho. Se fizer com azeite, não vai ter gosto de comida mineira.” Ela cita relatos do botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, que viajou por Minas no século 19 e observou que a gordura era usada como tempero (muitas vezes, substituía o sal).




 
A receita de pão de alho do Padú leva banha de porco (foto: Zito Cavalcante/Divulgação)
 
A chef acrescenta: arroz mineiro leva banha, bastante alho, sal e pronto. O feijão “gordo” também é uma tradição do restaurante. “Uso aparas de carne, pedaços de torresmo ou aquela borra que fica no fundo da carne de lata, com banha e fiapos de carne”, conta. Na receita do biscoito de polvilho, a banha está sempre presente. Só não aparece nas frituras.
 

Essencial no tropeiro

Quando ainda nem era chef, Juliana Duarte, do Cozinha Santo Antônio, resgatou a banha de porco, que era comum na sua infância, para fazer carne de lata e confit de pato em casa. No restaurante, não hesitou em tê-la como aliada. “Temos todo um cuidado de fazer uma comida com o mínimo de processamento e a banha é muito importante nisso. Além de tudo, agrega sabor”, justifica.
 
A banha de porco não está em todas as receitas, até porque a casa atende muitos veganos, mas Juliana a considera obrigatória em alguns pratos, como o tropeiro. “Ela é essencial na hora de envolver os bagos do feijão, para dar gosto e trazer untuosidade. Até o aroma é diferente”, analisa a chef, que ouve muita gente comentar do cheiro da sua comida, e a banha é uma das responsáveis.




 
Para Juliana Duarte, a banha é essencial no preparo do feijão-tropeiro (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
Juliana faz como o escritor mineiro Pedro Nava, que em um texto descreve que “a banha derrete-se, solta e refoga as pevides com mais a cebola, o alho, o cheiro-verde, a salsa e muita pimenta”. O feijão-tropeiro do Cozinha Santo Antônio ainda tem linguiça fresca, paio, lombo defumado, torresmo e ovo mexido. A couve que acompanha também é refogada na banha de porco. Completam o prato arroz, vinagrete de tomate com chuchu e ovo frito (opcional).
 
A chef não dispensa a banha para fazer o frango pinga e frita (que consiste em fritar a carne na gordura e usar água para caramelizar o fundo da panela). No prato Ensaio para Frieiro, coxa e sobrecoxa são servidas com angu de milho crioulo, telha de feijão, pipoca, quiabo e folha crocante de couve.
 
No restaurante, também é comum usar banha na hora de marinar as carnes de porco. “Antigamente, elas eram mais gordurosas, então não ficavam tão secas. Hoje, como são mais tratadas, acho que um pouco de banha ajuda a hidratar e deixá-las mais suculentas”, explica.




 
Fora a questão do sabor, Juliana gosta de trabalhar com a banha por ser uma gordura natural e sem aditivos. Além disso, como compra de um fornecedor de defumados da Serra da Moeda, ela sabe exatamente a procedência. “Usar banha não quer dizer que você está servindo uma comida engordurada, isso é um mito. Basta usar a quantidade correta.”
 

Nada se compara

Quanto mais torresmo de rolo o Padú Cozinha Festiva serve, mais banha tem para cozinhar. O chef Zito Cavalcante extrai do longo cozimento no forno da barriga de porco a gordura para preparar quase 100% dos pratos do restaurante. “Uso a banha como elemento de sabor e textura. Com nenhuma outra gordura fica igual”, defende.
 
Zito Cavalcante ousa ao usar a gordura do porco para grelhar frutos do mar, como polvo (foto: Zito Cavalcante/Divulgação)
 
No Padú, a banha de porco tem usos diversos. Está no refogado de pratos como feijoada, galinhada, língua e mexido. Também costuma ser usada para curar carne de sol e na massa do pão de alho da casa. Mas Zito não fica só no óbvio. Recorre à gordura para fazer arroz de polvo. Para ele, a combinação com frutos do mar é sensacional. “A diferença existe, mas é sutil. Você não identifica que está comendo polvo com porco, mas sente uma construção de sabor mais complexa e mais interessante.”




 
Até na hora da sobremesa a banha de porco aparece. O chef usa (sozinha ou misturada com manteiga) para fazer a massa de tortas doces, como limão e maracujá, pensando na textura. Nesse caso, ela não interfere no sabor. “Se você deixar a massa assar um pouco mais, consegue uma crocância inigualável com a banha, sem deixar com gosto de óleo queimado”, explica.
 
Apesar de todo o amor que tem pela banha, Zito diz que não usa de forma displicente. “É um elemento muito potente, que faz parte do prato como algo único, não é para ser neutro, então temos que tomar cuidado, assim como tomamos cuidado no uso do sal, alho, cebola e ervas”, pondera. Além disso, ele lembra que é uma gordura como qualquer outra e em excesso não faz bem.
 

Vontade de ousar

“Banha é o nosso futuro, só não descobrimos isso ainda”, comenta Paulo Yoller, que usa o ingrediente no preparo dos hambúrgueres da CJ’s Burger. O chef considera a banha de porco uma das gorduras mais limpas, saudáveis e saborosas que existem.




 
Na hora de preparar a carne, surge outra vantagem. A banha de porco suporta altas temperaturas na chapa, que trabalha, em média, a 300 graus. Segundo Paulo, vários óleos vegetais, quando chegam a determinadas temperaturas, queimam e interferem no sabor do preparo.
 
No hambúrguer: Paulo Yoller, da CJ's Burger, escolheu trabalhar com um produto tipicamente mineiro e que agrega mais uma camada de sabor (foto: Victor Schwaner/Divulgação)
“Isso não é comum em hamburguerias, mas quis ousar um pouco em BH. Fiz bastantes testes para substituir a manteiga clarificada, que uso no Meats, em São Paulo, por um produto tipicamente mineiro, que me traz uma camada de sabor muito diferente”, aponta o chef. Enquanto a manteiga puxa para o leite, a banha tem o sabor do porco, o que para ele deixa o hambúrguer muito mais gostoso.
 
Quando o pedido chega, a equipe da CJ’s Burger aquece a banha de porco no forno para ela entrar líquida na chapa. Como trabalha com smashburger (carne mais fina), a intenção é formar uma crosta por fora, sem perder a suculência por dentro.




 
O chef só não usa banha para fritar a batata frita por questão de custo, já que não tem dúvida de que ficaria deliciosa (na Europa, ele comia muita batata frita na gordura de pato). Em casa, ele tem sempre um balde de banha e usa em (quase) tudo. “Coloco um pouquinho e é o bastante para adicionar sabor, cheiro e tudo mais que ela pode agregar ao meu preparo.” 
 

Arroz negro com polvo (Padú Cozinha Festiva)

Ingredientes
4 tentáculos médios de polvo; 120g de arroz negro; 70g de banha de porco; 10 dentes de alho; 1 cebola; 2 folhas de louro; 2 galhos pequenos de alecrim; sal grosso, sal refinado e pimenta-do-reino a gosto

Modo de fazer
Em uma panela de pressão, coloque as folhas de louro, o alecrim, 5 dentes de alho amassados, 1/2 cebola cortada grosseiramente, uma pitada generosa de sal grosso e os tentáculos de polvo. Encha de água até quase ficar na altura dos ingredientes. Ligue o fogo e conte 12 minutos após a pressão. Tire o polvo e reserve os tentáculos e o caldo. Refogue o restante do alho e o arroz negro. Cozinhe com o caldo até que fique al dente. Pegue uma frigideira antiaderente, derreta a banha até que fique bem quente e grelhe bem os tentáculos até que criem uma casquinha. Ajuste o sal e adicione bastante pimenta-do-reino moída na hora. Pique parte do polvo e misture no arroz. O restante sirva por cima. 

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