Jornal Estado de Minas

Tradição judaica: belo-horizontinos contam histórias através da comida

Pão challah (Hallah) (foto: Jane Linhares/Divulgação)

Não basta ter sabor. Em tempos de valorização das experiências, as pessoas se interessam mesmo é por pratos que carregam tradição, contam história, apresentam uma cultura diferente. A cozinha judaica tem muito a mostrar. Receitas típicas, algumas raras de se encontrar na cidade, despertam a curiosidade dos belo-horizontinos pelas mãos de judeus que querem preservar hábitos milenares.




 
Simone Wajnman cresceu em uma família judaica que não era religiosa, mas muito ligada à tradição. Seus quatro avós vieram do Leste Europeu, três da Polônia e um da Romênia. Em casa, todos falavam iídiche, a língua dos judeus na Europa, e comiam pratos típicos. “Sempre vivi mergulhada nesta cultura, mas não sabia nada além da história dos meus avós.”
 
A vida de Simone mudou depois de uma viagem à Polônia, há dois anos. O contato profundo e emocionado com as suas origens acabou impulsionando uma grande transformação: ela passou a fazer pães judaicos à frente da marca Hallah. “Sou demógrafa e trabalhei por 35 anos como professora da UFMG, mas, se me perguntassem, diria que a minha paixão era a cozinha. A minha avó contava que eu subia no banquinho e ficava na beira do fogão perguntando o que ela estava fazendo”, conta.
 
A professora sempre cozinhou em casa. Mantinha os três filhos unidos em volta da mesa. Nos últimos tempos, estava envolvida com pães de fermentação natural e, depois da viagem, começou a recriar nas receitas o que comia em família. O que seria para consumo próprio ou, no máximo, presentear os amigos, rapidamente atraiu curiosos em conhecer a história dos pães.
 
Os testes começaram pelo pão de cebola. Simone explica: “O prato de que nunca me esqueço, que me dá conforto emocional e espiritual, é o varenike. É como se fosse um ravióli recheado de cebola e coberto com muita cebola frita”. Imagina a felicidade dela ao reencontrar esse sabor na Polônia. Durante a viagem, comia todos os dias (literalmente), no almoço e no jantar.




 
 
A sua receita leva farinhas branca e integral, sementes de papoula (ingrediente muito popular na cozinha judaica, usado em bolos, pães e biscoitos) e cebola. “Na minha infância, chamavam de cebola frita, hoje falam caramelizada. Nada mais é do que a cebola dourada na manteiga com um pouco de sal e açúcar. Dou também um toque de missô.” Simone sugere comê-lo com lox (nome que os judeus dão ao gravlax, que é o salmão curado) e creme de alho-poró.
 

Em datas festivas

 
Outro pão que está no cardápio é a tradicional challah ou hallah, presente em todas as datas festivas, como o Yom Kipur, dia dedicado ao jejum. “Cresci comendo hallahs horríveis, duras e secas. Descobri pessoalmente na Polônia que elas não precisam ser assim. Podem ser lindas e deliciosas.”
 
A viagem instigou Simone a aprimorar a receita. Na versão dela, a massa é levíssima, de fermentação natural. Originalmente para acompanhar a comida, a hallah tem apenas farinha, mel e azeite. “As hallahs são totalmente neutras, não se parecem com a rosca mineira, que leva leite condensado e açúcar, a não ser pelo visual”, pontua a professora, que não se limita à tradição e incentiva o consumo em vários momentos do dia. As coberturas mais comuns são semente de papoula e gergelim.




 
Filé de arenque marinado e conservado em azeite (Cohen& Daughters) (foto: Jane Linhares/Divulgação)
Como a massa é bem simples, as invencionices se expressam nos formatos. A hallah pode ser redonda, comprida, quadrada, em forma de coração etc. Simone diz que o céu é o limite. “Gosto da hallah por isso, as tramas vão se tecendo e criando desenhos bonitos. A nossa vida é assim.” A massa já assada ganha um banho de água com açúcar ou azeite para ficar com a cor dourada e o brilho característicos.
 
Uma opção doce é o babka, com massa amanteigada e muito recheio. Simone não tem sabores fixos, se inspira no que encontra no mercado. Já usou chocolate, frutas vermelhas, pera e cereja. “A palavra bakba é vovó em polonês e de fato o pão lembra um abraço gostoso e aconchegante de vó.”
 
Simone se sente extremamente feliz e realizada com o trabalho como padeira. No momento, está testando receitas de beigale e bagel. “Perdi muito cedo mãe, pai e irmão, fora a história familiar de perdas inerentes à cultura judaica, e isso está me dando propósito de resgate de afetividade familiar. Como a hallah, vou tecendo diversos fios da minha vida e formando um conjunto harmonioso.”




 

Iguaria de águas geladas

 
No judaísmo, como explica o físico e professor Aba Cohen, memória e tradição são fundamentais. Uma das tradições da família dele, que veio da Pérsia, é reunir dezenas de pessoas ao redor da mesa em pelo menos duas grandes festas anuais: Rosh Hashaná, o ano-novo judaico, e Pessach, a Páscoa. “Comida é extremamente importante, é o nosso elo”, comenta.
 
Aba sempre gostou de cozinhar. Diz que tem uma lista com meia dúzia de pratos que sabe fazer, como o salmão inteiro assado em papel-alumínio com manteiga, alcaparra e bastante limão. Uma receita, em especial, que não é tradição persa, mas dos judeus da Europa, desperta há anos sua curiosidade: o peixe hering (aqui chamado de arenque) marinado, iguaria que recentemente trouxe para a cidade com a marca Cohen&Daughters, em referência às três filhas.
 
Bolinho de peixe com salada de beterraba (Nanci de Deus) (foto: Arquivo pessoal)
 
Há 50 anos, o físico conta que era possível comer hering no Tip Top, bar fundado por judeus em Belo Horizonte. Depois nunca mais o encontrou na cidade. Muito comum no Bar Mitzvá, cerimônia que insere o jovem na comunidade judaica, o peixe tinha que vir de São Paulo. Era sinônimo de comida salgada, por causa da salmoura.




 
Aba passou anos pesquisando e provando receitas no mundo inteiro, em especial Israel (hoje, uma das suas filhas mora em Telavive). Conta que já comeu hering em Arad, cidade no meio do deserto, onde vivem judeus russos, que seguem essa tradição. Até que chegou à sua receita. “Sentia muita falta desse peixe, que gosto de comer todo dia de manhã, e comecei a fazer para o meu consumo.”
 
O hering é um peixe de carne rosada e muito rico em ômega 3, que vive em águas geladas. Vem da Noruega e chega para Aba congelado na própria água do mar. Para não correr o risco de salgar demais, como o do Bar Mitzvá, ele usa uma balança para medir a quantidade de sal da marinada, que também tem especiarias e limão. Depois o peixe é banhado no azeite.
 
No início, Aba comprava 80kg de hering, que durava quatro meses. Ele consumia a maior parte e o pouco que sobrava vendia para os amigos. Agora, os 120kg acabam em um mês e a maior parte é vendida. Muitos dos clientes já comeram o peixe fora do Brasil e sabem do valor da iguaria. A sugestão é comê-lo com um pão mais pesado, cream cheese ou requeijão e cebola, que é “imprescindível”.




 

Fusão de culturas

 
A tradição judaica também se espalha através de não judeus. Dono de restaurante árabe em Brumadinho, Antônio Abrahão, de família síria, teve contato com uma receita judaica muito antes de sonhar em trabalhar com cozinha. Há quase 40 anos, ele fez em casa gefilte fish, os bolinhos de peixe.
 
Muito tempo depois, em pesquisas sobre a sua origem, ele conheceu a história de Alepo, cidade na Síria que recebeu judeus por séculos. Quando a comunidade judaica saiu de lá, já havia assimilado muito da cozinha árabe e a espalhou pelo mundo.
 
Abrahão serve no restaurante uma entrada de origem árabe com pegada judaica. É o kibbeh neye w'khidrawat, quibe cru que não leva carne, tem pimentões amarelo, verde e vermelho, salsa, triguilho, lentilhas, cominho, sal, melaço de tamarindo e cebola crua. Vira quase uma salada e pode ser servido com pão ou acompanhar uma carne.




 
Babka de frutas vermelhas e amêndoas (Hallah) (foto: Jane Linhares/Divulgação)
 
A divisão entre árabes e judeus não existe no restaurante de Abrahão. “Sou de origem síria, mas nasci no Brasil e não fujo a essa mistura. Acho que, na cozinha, diferentes culturas se encontram e através dela temos que preservar valores de fraternidade, paz e comunhão”, defende.
 
“Amo a culinária judaica”, diz a cozinheira Nanci de Deus, que se especializou em receitas típicas dos judeus. Aprendeu com a tia, que trabalhou na casa de uma família judia. Desde então, atende por encomenda pedidos, geralmente, da comunidade judaica.
 
De entrada, ela costuma preparar o gefilte fish com uma salada de beterraba (misturada com raiz forte) ou mousse de fígado de pato, que os judeus comem com o pão hallah. Na sequência, é comum servir varenike, a massa com cebola, e uma carne.




 
Para finalizar, o strudel (os judeus mais antigos chamam de fluden), que é a especialidade de Nanci. “As pessoas fazem com massa folhada pronta, mas a minha é 100% artesanal. Vejo que fica mais leve”, explica. Com recheio de nozes, a sobremesa é enrolada igual rocambole. Normalmente, é servida em ocasiões especiais, como Bar Mitzvá e casamentos. 
 

Kibbeh neye w'khidrawat (Antônio Abrahão)


Ingredientes
1 maço de salsa; 4 ou 5 cebolinhas; 1 pimentão vermelho; 1 pimentão verde; 1 pimentão amarelo; 2 tomates; 3 cebolas; 1 xícara de lentilhas cozidas; 2 xícaras de triguilho lavado; 1 xícara de massa de tomate; 1 colher de sopa de cominho; 1/2 de colher de chá de chili em flocos; sal kosher a gosto; 1/2 xícara de concentrado de tamarindo; 1 xícara de azeite

Modo de fazer
Corte os pimentões, tomates e cebolas em quadradinhos. Pique a salsinha e a cebolinha. Cozinhe a lentilha. Misture tudo com o triguilho. Tempere com sal, chili, cominho, massa de tomate, azeite e tamarindo. Acerte o gosto se precisar. Deixe na geladeira, coberto, por cerca de 30 minutos. Depois, forme pequenos torpedos. Sirva à temperatura ambiente com melaço de tamarindo, se desejar.
 

Serviço

Hallah
(31) 99981-4554
 
Cohen&Daughters
(31) 99622-7090
 
No ateliê do Abrahão
(31) 99205-5139
 
Nanci de Deus
(31) 99801-5680

audima