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Estado de Minas Entrevista

Jornalista francês revela em livro como funciona a produção dos 'tomates industriais'

Jean-Baptiste Malet reconstruiu toda a cadeia de abastecimento do tomate, desde as colheitas na China até a maior fábrica do mundo, nos Estados Unidos


20/10/2019 04:00 - atualizado 17/10/2019 14:43
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Jean-Baptiste Malet ficou chocado com as condições de trabalho dos colhedores de tomate na China e no Sul da Itália
Jean-Baptiste Malet ficou chocado com as condições de trabalho dos colhedores de tomate na China e no Sul da Itália (foto: David Latour/Divulgação)


Ao olhar para uma embalagem de catchup, extrato, molho ou conserva, você enxerga um tomate fresco, vermelho e redondo? Pois saiba que está enganado. Produtos como esses são fabricados a partir de um concentrado de tomates plantados exclusivamente para a indústria, que são mais alongados, densos (pouca água) e com a pele bem espessa para resistir ao transporte. No livro O império do ouro vermelho: a história secreta de uma mercadoria universal, o jornalista francês Jean-Baptiste Malet revela detalhes obscuros de uma indústria alimentícia poderosa, que impacta a alimentação de todo o planeta. Em pesquisa que durou dois anos, ele reconstruiu toda a cadeia de abastecimento do tomate, desde as colheitas na China até a maior fábrica do mundo, nos Estados Unidos.
 
Por que investigar o tomate?
Em 2011, descobri em Vaucluse (França) a existência de uma fábrica de conservas chamada Le Cabanon, comprada pelo Exército chinês em 2004. Surpreso com a presença do Exército Popular em uma área tão distante dos interesses militares, solicitei um encontro com os líderes da empresa chinesa, que se recusaram categoricamente a me receber ou mesmo a me mostrar o local. Longe de me sentir desencorajado, fui até lá e, ao olhar pelos portões, vi barris rotulados como “Made in China”. A descoberta me assombrou durante muito tempo e resolvi investigar esta cadeia produtiva. Fiquei muito intrigado, principalmente pelo fato de ter crescido vendo minha avó fazer tomates enlatados. Há algumas décadas, na Provença, era um ritual familiar transformar os próprios tomates em coulis. Por isso, descobrir barris de concentrado de tomate da China no Vaucluse me pareceu inacreditável.

O que são exatamente “tomates industriais”?
São tomates que se destinam à indústria. Esses tomates crescem no campo, no verão no hemisfério norte e durante todo o ano na América Latina. Nunca os vemos nos mercados ou nos nossos pratos. Eles têm a pele muito espessa para resistir ao transporte por caminhão e ser, então, transformados ou encaixotados na fábrica.

Por que o concentrado se tornou a melhor opção para os fabricantes?
Não há outro exemplo na era capitalista de uma mercadoria universal tão acessível, encontrada nos restaurantes modernos de São Francisco e nas aldeias mais pobres da África. Mesmo as pessoas que vivem com menos de um dólar por dia podem comprar e comer o extrato de tomate, às vezes vendido em colheres por alguns centavos. Nos anos 1980, a invenção do barril asséptico de 230kg tornou o concentrado triplo facilmente transportável. Com isso, grandes multinacionais passaram a comprar esses barris para produzir seus produtos industriais, preferindo adquirir a matéria-prima em vez de produzir os tomates. A história do extrato de tomate é um concentrado do capitalismo.

O Brasil está envolvido nesta história?
O Brasil, como a maioria dos países, importa tomates industriais. Um terço do concentrado encontrado no Brasil vem do Chile, mas entre os produtos mais baratos consumidos pelos brasileiros há também o tomate chinês. O Brasil importou mais de US$ 5 milhões em extrato de tomate da China em 2017 (e mais de US$ 13 milhões do Chile). Na minha opinião, isso é uma loucura. A América do Sul é o berço de origem do tomate, então não deveria importar esse produto. Da minha parte, acredito que o Brasil poderia e deveria produzir todos os seus tomates. Mas, para isso, temos de desafiar o dogma liberal e, consequentemente, o comércio livre.

O que nós, consumidores, podemos fazer contra essa indústria?
Primeiramente, não nos comportar como consumidores, mas como cidadãos. Infelizmente, hoje não sabemos a origem exata dos nossos produtos. Por isso, devemos, entre muitas outras coisas, encorajar a mais absoluta transparência quanto aos fluxos de mercadorias e das relações de produção. Um boicote pode ser uma arma política eficaz em determinadas circunstâncias – nossa história de luta social mostra isso –, mas nada mudará sem uma luta política estruturada. A alimentação é um assunto político, e por isso essas questões devem ser politizadas.
 
 

Você teve medo, em algum momento, de publicar o livro?
Meu livro foi publicado originalmente na Itália, onde perturbou um executivo do Sul do país que tinha uma péssima reputação. Sua fábrica de conservas exerceu uma pressão tão grande que, mesmo sem qualquer condenação em tribunal, meu editor italiano acabou por ceder, retirando o livro de circulação. Foi o único país onde isso aconteceu. A obra foi traduzida em oito línguas e estou trabalhando com minha editora francesa para torná-la novamente disponível na Itália. Estou muito feliz que este livro esteja agora disponível em português para todos os brasileiros. 

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