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Estado de Minas

Conheça a história do livro 'póstumo' que uma poeta de 88 anos publica neste 2020

Redescoberta por uma nova geração de poetas, Maria Lúcia Alvim se convenceu a lançar 'Batendo pasto', que está em pré-venda pela Relicário


16/08/2020 06:00 - atualizado 16/08/2020 09:30

Natural de Araxá, Maria Lúcia Alvim hoje vive em Juiz de Fora, onde os poetas Guilherme Gontijo Flores e Ricardo Domeneck a localizaram, depois de se impressionar com Vivenda, coletânea dos cinco livros que publicou até 1980(foto: SEBASTIÃO ROCHA REIS/DIVULGAÇÃO)
Natural de Araxá, Maria Lúcia Alvim hoje vive em Juiz de Fora, onde os poetas Guilherme Gontijo Flores e Ricardo Domeneck a localizaram, depois de se impressionar com Vivenda, coletânea dos cinco livros que publicou até 1980 (foto: SEBASTIÃO ROCHA REIS/DIVULGAÇÃO)
Um livro engavetado por 38 anos que só deveria ser publicado após a morte de sua autora. Uma grande poeta de uma família mineira de poetas igualmente grandes que estava esquecida e cuja última obra foi publicada há quatro décadas. Esta é a história de Maria Lúcia Alvim e de Batendo pasto, livro que a editora belo-horizontina Relicário lança neste mês. 

“Um acontecimento e um pequeno milagre”, descreve o poeta paulista Ricardo Domeneck, um dos responsáveis pelo lançamento da obra, que, felizmente, vem à luz com a autora viva. Nascida em Araxá, Maria Lúcia viveu principalmente entre o Rio de Janeiro e a fazenda da família na Zona da Mata mineira. Desde 2011 reside em Juiz de Fora. Há alguns anos, mora em uma residência para idosos.

“Fiquei muito perplexa quando me descobriram, com a aparição do Ricardo. As pessoas achavam que eu já estava morta”, diz ela, que completa 88 anos em 4 de outubro. 

Até os anos 1980, ela havia publicado somente cinco livros. Sua estreia foi em 1959, com XX Sonetos. Em 1968 lançou duas obras, Coração incólume e Pose. Romanceiro de Dona Beja só veio 11 anos mais tarde. E em 1980 lançou A rosa malvada. 

Essas obras foram reunidas em um único volume, Vivenda (1959-1989), da Claro Enigma, cultuada coleção de poesia que Augusto Massi editou entre 1988 e 1991 pela livraria Duas Cidades. Francisco Alvim, irmão de Maria Lúcia, e Paulo Henriques Britto, amigo da poeta, também foram editados pela Claro Enigma.

Foi precisamente Vivenda o ponto de partida desta (re) descoberta. Poeta brasiliense radicado em Curitiba, Guilherme Gontijo Flores comprou o volume. “Quando comecei a ler, vi que era absolutamente genial. Fui para a internet e o pouco que havia sobre ela fazia referência a este livro”,  conta ele.

Gontijo Flores fez uma publicação sobre Vivenda em seu blog (escamandro.wordpress.com), e comentou sobre a descoberta com Domeneck, que vive em Berlim. Os dois passaram a procurar por Maria Lúcia, pois sequer sabiam se estava viva. Descobriram-na em Juiz de Fora e, no início deste ano, quando passou uma temporada no Brasil, Domeneck foi ao encontro dela.

CONFIANÇA 

“Queria conhecê-la, criar uma relação de confiança. Naquele momento, não sabíamos que havia um manuscrito”, comenta. Ele organizou um evento em homenagem a Maria Lúcia em 2 de março, na Livraria da Travessa de Botafogo.

Nos últimos tempos, ela só sai de casa para ir ao médico ou, muito eventualmente, ao cabeleireiro. Para a viagem ao Rio, foi feito um grande trabalho de convencimento – por Domeneck e a cuidadora da poeta, Luciana de Oliveira Dias, que a acompanha na última década.

No evento, que contou com leituras de poema, havia amigos de Maria Lúcia, entre eles Paulo Henriques Britto, que contou a Domeneck da existência de Batendo pasto. 

“Conheci Maria Lúcia numa leitura de poemas dos anos 1980, quando isso virou moda nos restaurantes do Rio. Ficamos amigos. Depois, quando ela já estava morando em Minas, veio ao Rio e me disse que tinha um livro prontinho, me pedindo para escrever a apresentação. Veio com a história de que queria que fosse publicado logo que morresse. E ainda queria que os originais ficassem comigo. Eu disse que ficaria com a cópia, a duras penas a convenci a tirar o xerox”, conta Britto.

O livro, conforme o pedido da autora, permaneceu na gaveta de Britto, até ele contar a história a Domeneck. A edição que sai agora está tal e qual Maria Lúcia a concebeu (só foram feitas atualizações ortográficas), inclusive com o texto de Britto, que também assina a orelha.

REPERCUSSÃO 

“Acho uma felicidade a publicação de uma poeta tão boa que nunca teve a repercussão que mereceu”, afirma Britto, que jamais entendeu o porquê do pedido para a publicação póstuma. 

“Vou me valer de uma expressão de Clarice Lispector em A paixão segundo G.H. (1964), que fala sobre uma alegria difícil. Sinto uma alegria difícil nos poemas da Maria Lúcia. É uma poesia de contraste, de uma mulher muito consciente da luz e da escuridão, que é a nossa vida. Mas este livro me parece uma obra de celebração da vida simples”, opina Domeneck.

Com Gontijo Flores, ele está organizando uma antologia da autora para a editora portuguesa Douda Correria, que deve ser lançada ainda neste ano. “Já perguntaram também de uma antologia no Brasil. Primeiro estamos cuidando deste inédito, vamos ver como será a recepção, mas gostaríamos de continuar com esta recuperação crítica”, diz Domeneck.

“Maria Lúcia consegue escrever em vários módulos diferentes. Há sonetos rigorosíssimos e também quase haikais de contemplação. Ela consegue se desdobrar em vozes e tons com um rigor que não acaba nunca e se sucede bem em todos. (Sua obra) É cerebral, analítica, sensual, muito erótica e dolorida”, analisa Gontijo Flores.

DISSERTAÇÃO 

Como foi pouco publicada, Maria Lúcia também foi pouco estudada. Um dos raros trabalhos de peso sobre sua obra é a dissertação A narrativa histórica na poesia de Maria Lúcia Alvim: Romanceiro de Dona Beja, que Juliana Veloso Mendes defendeu em 2015 no mestrado da Faculdade de Letras da UFMG. 

 “Ela domina de modo magistral a forma poética transitando entre versos livres e rimas, poemas curtos e longos, formas tradicionais e modernas, colocando-a em diálogo, e não a serviço, com os mais variados temas. Tudo isso deslocada de e tensionando as escolas e os estilos literários das épocas que atravessa. O que a coloca à margem da produção literária é justamente o que deve trazê-la ao centro”, afirma Juliana.

Seu orientador na dissertação, o poeta Sérgio Alcides, afirma que o lançamento de Batendo pasto é um “acontecimento salvador”. “Não sei de nenhum fato mais importante para os leitores de poesia, que tenha até agora ocorrido neste ano ou esteja para ocorrer, no nosso país.”

Os poetas ouvidos pela reportagem comentaram ainda da singularidade dos Alvim. Três dos cinco irmãos se tornaram grandes poetas. “Para Maria Lúcia e Francisco não deve ter sido fácil encontrar caminhos próprios, sem se deixarem assimilar pela força do exemplo da irmã mais velha, tão forte e impressionante, mas abruptamente desaparecida”, comenta Alcides.

O casal Fausto Figueira Soares Alvim e Mercedes Costa Cruz Alvim teve cinco filhos: Maria Ângela, Maurício, Maria Lúcia, Francisco e Fausto. Maria Lúcia e Francisco, os únicos que estão vivos, foram também os que nasceram em Araxá. Seu pai, advogado de família de fazendeiros na Zona da Mata, foi prefeito daquela cidade entre 1930 e 1940.   

Maria Ângela, a primogênita, publicou um só livro, Superfície (1950), obra na época celebrada por Carlos Drummond de Andrade. Morreu em 1959, aos 33 anos. “Acho que a Ângela é uma figura tutelar, e a mim a poesia dela chegou de maneira extraordinária”, comenta Francisco, de 81 anos, conhecido como Chico Alvim no universo da poesia. 

Poeta e diplomata, ele foi o que estreou mais tarde na literatura entre os três irmãos. E o fez com Sol dos cegos (1968). Em um momento inicial ligado à poesia marginal, tornou-se, por outro lado, o mais conhecido dos Alvim, inclusive com dois prêmios Jabuti.

“O lançamento de Batendo pasto é uma coisa estupenda. Mais cedo ou mais tarde, o reconhecimento viria, pois Maria Lúcia tem uma poesia notável. Não é que não tenha havido reconhecimento. Ele existiu desde o início, pois XX Sonetos recebeu o prêmio da Gazeta de Notícias, de São Paulo, que tinha muito prestígio. Houve uma segunda onda, com a coleção Claro Enigma, da qual ela foi uma das primeiras convidadas. Agora veio o interesse de outra geração de poetas. E esta é a (onda) mais importante de todas, pois eles estão fazendo uma leitura da poesia da Maria Lúcia muito viva e diferente das outras”, comenta Francisco.

Maria Lúcia não acha tão incomum tantos poetas em uma mesma família. “Todos são um pouco poetas ou músicos. Sempre fomos ligados à literatura, papai era um homem da palavra, um grande orador. Mamãe era violinista, mas abandonou a carreira porque papai não queria.”

A influência de Maria Ângela, segundo ela, foi definitiva. “Depois que a Ângela morreu, eu comecei a escrever com mais frequência, descobri que a questão de estar viva, para mim, era escrever poesia.” O lançamento de Batendo pasto (e há outros originais inéditos) é um novo começo. “O livro impressionou inclusive a mim mesma. Às vezes eu abria e pensava: ‘Fui eu que escrevi isto tudo?’” 

Cantiga de roda

(Maria Lúcia Alvim)

Eu era assim no dia dos meus anos
E quando me casei, eu era assim
Eu era assim na roda dos enganos
E quando me apartei, eu era assim

Eu era assim caçula dos arcanos
E quando me sovei, eu era assim
Eu era assim na voz dos minuanos
E pela primavera, eu era assim

Enquanto fui viúva, eu era assim
Enquanto fui vadia, eu era assim
E pela cor furtiva, eu era assim

No amor que tu me deste, eu era assim
E trás da lua cheia, eu era assim
E quando fui caveira, eu era assim


BATENDO PASTO
Maria Lúcia Alvim
Relicário Edições (132 págs.)
R$ 35,70.
Em pré-venda no site relicarioedicoes.com


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