Cordisburgo – Natureza, música, história, cultura e a misteriosa essência das Gerais em completa harmonia, na terra natal do escritor João Guimarães Rosa (1908-1967). Na manhã deste domingo (22/10), a Gruta do Maquiné, em Cordisburgo, na Região Central de Minas, tornou-se palco da pré-estreia da ópera inédita "Matraga", baseada no conto "A hora e a vez de Augusto Matraga", do livro “Sagarana” (1946).

Eis, agora, o resumo da ópera: uma viagem sensorial com escalas nas emoções e no encantamento,  na força das palavras, no talento de mais de 200 artistas e na espetacular atmosfera da caverna. A estreia no Palácio das Artes,  em Belo Horizonte,  será na próxima quarta-feira (25/10).

Em Maquiné, foram apresentados trechos, com duração de uma hora, da superprodução em três atos, de Rufo Herrera (libreto e música), que reúne todos os corpos artísticos da Fundação Clóvis Salgado (Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, Companhia de Dança Palácio das Artes e Coral Lírico de Minas Gerais).

"Pela primeira vez, uma ópera é apresentada numa caverna, um cenário inusitado e, neste caso, presente na história", destacou o secretário estadual de Cultura e Turismo, Leônidas Oliveira, considerando a transversalidade dos setores de cultura, turismo e meio ambiente. A Fundação Clóvis Salgado é vinculada à Secretaria de Cultura.

"Temos, aqui, um modo muito especial de fazer uma ópera. E teatro com tê maiúsculo. Não existe apenas um modo de se fazer óperas. Há muitas maneiras e algumas sequer conhecemos. O que oferecemos aqui não é uma nova maneira. É um diferente modo"

Rita Clemente, diretora



Também na pré-estreia (para convidados), o vice-governador, Professor Mateus, ressaltou a combinação de três fatores fundamentais à produção, sustentados pela "mineiridade": a obra de Rosa, Maquiné e o Palácio das Artes, o próximo palco.

Monumento Natural de Minas localizado na Rota Peter Lund, Maquiné foi escolhida tanto por ser uma gruta, o cenário real do ponto de virada da narrativa do autor em seu conto, como pelo patrimônio espeleológico, ícones da terra do autor de inúmeras obras além de “Sagarana”, como “Grande sertão: Veredas”, “Corpo de baile”, “Primeiras estórias”, “Noites do sertão”, entre outros.

Eram 11h10, quando os berrantes chamaram para o início do espetáculo, que, sucessivamente, ocupou sete salões com as milenares formações (estalactites e estalagmites) que encantam moradores e visitantes. À abertura da orquestra, sob regência da titular da OSMG, Lígia Amagio, entraram os atores para a primeira cena, ao som da viola de Chico Lobo. E surgiu, da natureza, lá fora, nas árvores, um coro de maritacas, parecendo modular o voo das andorinhas no interior do monumento.

Encenação de Matraga pela FCS na Gruta do Maquiné

O personagem Matraga é interpretado pelo ator Leonardo Fernandes

Leandro Couri/EM/D.A.Press

Passando pelas trilhas internas iluminadas, que provocavam sombras nos paredões, os convidados, usando capacetes brancos de segurança, pareciam acompanhar uma procissão. O clima ficava mais intenso com o coral entoando músicas religiosas e orações, a exemplo de Salve, Rainha.

Bem-humorada e se mostrando satisfeita com o resultado, Ligia Amadio brincou com o fato de ser a primeira mulher a reger uma orquestra numa caverna e elogiou o elenco "incrivelmente talentoso". Ao lado, a diretora cênica, Rita Clemente, observou que todos os desafios foram superados com o "trabalho de equipe".

“A hora e a vez de Augusto Matraga”, que já foi levado às telas duas vezes (em 1965, por Roberto Santos, e em 2011, por Vinicius Coimbra), é o último conto de “Sagarana”, estreia de Guimarães Rosa na literatura. Para o crítico literário Antonio Candido (1918-2017), trata-se da obra-prima do livro, “onde o autor entra em região quase épica de humanidade e cria um dos grandes tipos de nossa literatura, dentro do conto que será, daqui por diante, contado entre os dez ou doze mais perfeitos da língua”.

Vamos à história: Augusto Matraga é um fazendeiro poderoso e violento, “duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato”, rude como as terras remotas de Minas. Por temperamento, desprezo e ganância, perde tudo; dinheiro, posses e mais.

Encenação da ópera Matraga, montagem da FCS, em pré-estreia na Gruta do MaEquiné

A estreia da montagem em Belo Horizonte será no Palácio das Artes, na próxima quarta (25/10)

Leandro Couri/EM/D.A.Press

Traído pela mulher, Dionóra, ao tentar recuperá-la e vingar sua honra, Matraga é emboscado e espancado por seus inimigos, os capangas do Major Consilva. Atirado de um despenhadeiro num abismo, é dado como morto. Salvo pela bondade de um casal humilde, em busca do perdão para seus pecados e de um lugar no Céu, apega-se à religiosidade. 

Aparentemente resignado, Augusto conhece então o jagunço Joãozinho Bem-Bem, “o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa”, que desperta seus instintos mais primitivos. Matraga oscila entre a crença, a esperança – que não consegue abandonar – e a violência de sua natureza.
No elenco estão Leonardo Fernandes, no papel de Augusto Matraga; Gilson de Barros como narrador; Edineia Oliveira (mezzosoprano), como Mãe Quitéria; Edna d' Oliveira (soprano), como Dionóra; Geilson Santos (tenor), como Quim (recadeiro de Matraga) e cantador; Flávio Leite (tenor), como Joãozinho Bem-Bem (chefe dos jagunços).

Leonardo Fernandes contou que enxerga o personagem de Matraga como um homem que olha para as próprias sombras, jogando luz sobre os conflitos do ser humano. À tarde,  os trechos da ópera foram apresentados à comunidade. 
"Conheço os livros, e, vendo agora a ópera, senti a história de outra forma, ainda mais na Gruta do Maquiné, que é como se fosse minha casa", disse Ryan Lucas Diniz Nascimento, de 20 anos, guia e monitor ambiental. "Sensacional " foi a palavra encontrada por Franciely Miranda, coordenadora de operações do parque, onde fica Maquiné, para descrever o que viu e ouviu.

"Minas é mais universal"

Segundo o presidente da Fundação Clóvis Salgado, Sérgio Rodrigo Reis, “‘Matraga’ é um espetáculo ousado, contemporâneo, sob inspiração de uma dramaturgia tipicamente mineira. Escolhemos o que em Minas é mais universal: a genialidade de João Guimarães Rosa”. 

Ele explicou que a abordagem de Rufo Herrera traz o escritor mineiro para dentro da obra que, como narrador, caminha pelo sertão. “Não é uma ópera convencional, é música que tem elementos incidentais.”

De acordo com o material de divulgação, Rufo Herrera, argentino de 90 anos, contou que teve “Grande sertão: Veredas” como livro de cabeceira por cerca de 10 anos. “‘Sagarana’ vinha logo depois. Sua literatura é realista, mas realista fantástica. Tem coisas e personagens que, de fato, acontecem no sertão”. 

Encenação da ópera Matraga pela FCS na Gruta do MaEquiné

Rufo Herrera assina a música e também o libreto de "Matraga", que tem regência e direção musical de Ligia Amadio

Leandro Couri/EM/D.A.Press

“Quando a Fundação Clóvis Salgado me chamou para criar ‘Matraga’, eu já tinha o texto na ponta da língua e dois objetivos: promover a literatura de João Guimarães Rosa e trazer a obra para um estilo de composição do século 20. Vivi esses personagens, quando morei na Bahia. Essa intimidade me levou a tratar dos temas que ele aborda. Uma das forças da natureza da ópera é a violência de Matraga”, declarou.

A diretora do espetáculo, Rita Clemente, destacou que “Matraga” celebra a mineiridade. “Temos, aqui, um modo muito especial de fazer uma ópera. E teatro com tê maiúsculo. Não existe apenas um modo de se fazer óperas. Há muitas maneiras e algumas sequer conhecemos. O que oferecemos aqui não é uma nova maneira. É um diferente modo.” 

Narrado em terceira pessoa, o conto enfatiza duas constantes no sertão: a violência e a crença. E uma inconstante, a redenção do crime, com castigo, penitência, perdão e destino, por meio do catolicismo popular.

ESTREIA EM BELO HORIZONTE:

  • Ópera “Matraga”, de Rufo Herrera, baseada na obra de Guimarães Rosa, no Palácio das Artes (Avenida Afonso Pena, 1537, Centro)
    Datas e horários: 25/10 (quarta-feira), 27/10 (sexta-feira) e 28/10 (sábado), às 20h30; e 29/10 (domingo), às 19h
  • Direção musical de Ligia Amadio, regente titular da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais (OSMG), e direção cênica da atriz e dramaturga Rita Clemente. Além da OSMG, participam da montagem o Coral Lírico de Minas Gerais e a Cia de Dança Palácio das Artes.
  • Ingressos: R$ 60 (inteira – Plateias I e II) e R$ 50 (inteira – Plateia Superior)
  • Classificação indicativa: 14 anos
  • Mais informações: (31) 3236-7400

* O repórter viajou a convite da Fundação Clóvis Salgado