João Paulo Cunha*

O cineasta Helvécio Ratton vem construindo uma filmografia que parece se caracterizar pela variedade e coragem em experimentar caminhos distintos, tanto em termos temáticos e estéticos como de recorte de público. A simples apresentação de seus trabalhos evidencia essa busca de diversidade e ampliação do diálogo com os espectadores.





Em outras palavras, invertendo a tendência personalista de alguns diretores de sua geração, Ratton coloca o filme em destaque, não seu autor. A presença de sua digital, neste sentido, é resultado de uma afirmação de ideias que são traduzidas cinematograficamente, e não o contrário. No lugar do virtuosismo ensimesmado, entra em cena uma sofisticada artesania em busca de contato com o público, seu tempo e circunstâncias.


A obra de Ratton reúne títulos para crianças e adolescentes (“A dança dos bonecos”, “Menino Maluquinho” e “O segredo dos diamantes”); documentário a quente sobre os manicômios e sua desumanidade estrutural (“Em nome da razão”); farsa romântica de época (“Amor & Cia”); reconstrução histórica com tintas realistas de episódio da ditadura militar brasileira (“Batismo de sangue”); abertura ao novo cenário de protagonismo social e emergência de novas vozes (“Uma onda no ar”); e denúncia sobre a violência estatal-empresarial acerca do patrimônio cultural de Minas (“O mineiro e o queijo”). Seu mais recente filme, “O lodo”, é, ao mesmo tempo, a confirmação dessa trajetória diversa e uma espécie de alinhavo de unidade em seu percurso artístico e político.

Em relação ao primeiro aspecto, à ampliação de voz narrativa, o filme incorpora o formato do thriller psicológico, ainda pouco usual entre nós, que tem sua fatura mais acentuada no cinema norte-americano e no atual padrão de produções seriadas para streaming. Por outro lado, no que aponta para a unidade na diversidade, identificam-se no filme algumas escolhas que vêm caracterizando o cinema de Helvécio Ratton ao longo dos anos.




Em “O lodo” estão presentes, entre outros elementos singulares da linguagem do diretor, a ambientação, o humor sutil, o trabalho cada vez mais intenso com a direção de atores, a paisagem distintiva de Belo Horizonte, a orquestração dos elementos técnicos como base para o discurso artístico – ou seja, algo que só o cinema poderia realizar.

A escolha do conto de Murilo Rubião é mais um elemento nessa trama. Autor de obra enxuta, apenas 33 contos curtos publicados, o criador de “O pirotécnico Zacarias” é ele mesmo uma espécie de personagem muriliano em sua complexidade e riqueza. Passou a vida reescrevendo e rearranjando suas histórias em diferentes configurações, em busca de uma exatidão clássica.

Rubião é considerado o primeiro a fazer uso exclusivo da literatura fantástica entre nós, sendo comparado à tradição que se aproxima mais do absurdo kafkiano do que do maravilhoso latino-americano. O fantástico entra em suas histórias com a mais absoluta naturalidade, sem causar sustos ou estranhamentos.





Rubião demorou muitas décadas para ser valorizado. Mesmo Antonio Candido, o mais sagaz dos críticos brasileiros e amigo do escritor, faria sua autocrítica ao reconhecer com atraso que já no primeiro Murilo estavam presentes a marca do gênio e da originalidade.

Atores Eduardo Moreira e Inês Peixoto em cena: Grupo Galpão imprime a sua marca no filme

(foto: Bianca Aun/Divulgação)

Psicanálise e política

A primeira impressão é de que estamos diante de uma obra de humor. Manfredo é um homem sem distinção, tem existência opaca, ocupação sem importância, vida íntima banal. A saga de um pobre coitado só se torna dramática quando mediada pelo sofrimento e depressão. Quando se sabe que o personagem carrega um trauma, sua figura deixa de ser risível para se tornar trágica.

A forma como a psicanálise é apresentada, em sua empáfia e aparente superioridade – até a Justiça se curva a suas exigências –, responde a várias críticas dirigidas ao mundo psi: tudo é caro, arrogante, autossuficiente, defeso de críticas.





Ao comparar as sessões analíticas a confissões religiosas e a medicina ao catecismo, o personagem não percebe que começa a perder sua autonomia, tragado por uma espécie de processo ao qual se está condenado de antemão. Como Joseph K., personagem de Franz Kafka em “O processo”, depois que se cai na engrenagem não há escapatória: tudo o que fizer a partir daí apenas confirmará seu erro de origem. Mas para o personagem do conto de Rubião, o grande mal não vem das engrenagens do mundo exterior, mas vai sendo revelado de dentro para fora. Na ausência de uma perspectiva de expiação, mesmo em meio à atmosfera pesada de culpa que tangencia interditos e tabus ligados à sexualidade e ao incesto, a saída parece ser a aceitação do destino de uma punição sem fim, que escalavra o peito em forma de ferida sanguinolenta. Na falta de redenção, só o bisturi.

Outra vertente que se soma à pletora de possibilidades do filme de Ratton é sua inscrição na tradição, pouco comum no cinema nacional, dos thrillers de suspense. “O lodo” já foi comparado a “O inquilino”, de Roman Polanski. No suspense convencional, a quebra das expectativas conduz a narrativa em meio a fraturas e ações violentas.



No campo da psicologia, é preciso acreditar que há uma racionalidade, ainda que inconsciente, que é mais importante que a mera sucessão de eventos assustadores. Há motivo de ser no medo, há um sentido no encadeamento das cenas mais inusitadas, existe a expectativa de explicação e enquadramento dos mistérios que se sucedem durante a narrativa.





No thriller psicológico, como na clássica definição de Chesterton, o louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão. Gênero de grande sucesso de público, mesmo atraindo cineastas de peso como o próprio Polanski e Kubrick, ainda amarga preconceitos. Há um virtuosismo no gênero, em suas sugestões, inconsistências aparentes, silêncios e flashbacks, que são operados com habilidade por Ratton.

Helvécio Ratton e Lauro Escorel no set de filmagem, em BH, em abril de 2019

(foto: Edésio Ferreira/EM/D.A Press/16/4/19)

Luzes da cidade

Para realizar esses intentos, Ratton se amparou no trabalho dos atores, recrutados principalmente entre os integrantes e ex-integrantes do Grupo Galpão, de Belo Horizonte. Formado por artistas que desenvolvem trabalho coletivo há décadas, com intensa preparação e diálogo com os grandes encenadores brasileiros, o Galpão imprime sua marca no filme, mesmo mediado pela mão do diretor, que movimenta sutilmente a batuta, dando liberdade criativa aos atores.

Eduardo Moreira incorpora Manfredo, sendo o único a perceber o descompasso entre a realidade e o absurdo. Seu corpo vai se metamorfoseando e perdendo expressão até fazer aflorar uma chaga com dramática naturalidade.





Rodolfo Vaz faz a composição cômica de um personagem ridículo, com trejeitos de anti-herói e astúcias de malandragem, que ganham materialidade com o figurino e os olhares. A sensualidade madura de Fernanda Vianna e o comportamento oblíquo de Inês Peixoto completam o conjunto de personagens em torno de Manfredo.

Leia também"Broker" é um filme humanista sobre o nascimento de uma família sem parentes

Renato Parara, como o psicanalista Doutor Pink (ou Pinkerton, alusão à célebre agência de detetives particulares), tem inspiração em vilões do cinema de terror, trazendo a arrogância desses personagens para os estereótipos do campo psi, como desprezar a resistência ao tratamento como uma atitude transferencial imatura.

O roteiro de Helvécio Ratton e L. G. Bayão mergulha com inteligência na atmosfera do conto e sabe passar por todas as possibilidades sem escolher uma única via. Conto curto, de pouco mais de oito páginas em recente edição da Companhia das Letras, “O lodo” está todo no filme, inclusive nos diálogos mais expressivos e até nos silêncios e elipses.





Numa passagem do conto, o protagonista se recusa a pagar a consulta e diz que poderia gastar melhor seu dinheiro com mulheres. No filme, Manfredo apenas olha sugestivamente para a secretária do médico ao retomar a mesma cena.

A direção de arte de Adrian Cooper e a fotografia de Lauro Escorel seguem o mesmo empenho de garantir a expressão da história narrada na tela. Os ambientes vão do anódino ao mau gosto despreocupado, com poucas cores e objetos que parecem rearranjados de antigas residências (um solteirão geralmente herda uma casa velha, cheia de coisas velhas).

Os escritórios da companhia de seguros não têm personalidade e as pessoas que lá trabalham parecem fazer parte do mobiliário. Os enquadramentos vão sendo reduzidos, concentrados, localizados em pequenos nichos, com empenho quase cirúrgico em mostrar feridas no corpo, na alma e nos espaços.





A cidade é um personagem tratado com muito cuidado pelo diretor e o fotógrafo. Prédios de apartamentos, com seus corredores/túneis que evocam filmes de horror, com luzes intermitentes e barulhentas; passagens entre viadutos do Centro; edifício histórico cercado de comércio decadente; mansões recendendo a passado, com seu piano desafinado e estuques neoclássicos. É uma BH filmada com conhecimento de sua luz, de seus desvãos, de suas aporias, como poucas vezes chegou às telas.

A grande tentação ao adaptar uma obra da literatura fantástica está no risco duplo de decifrar os símbolos, tirando a potência da narrativa pela resolução do conflito; ou mergulhar no absurdo de forma lisérgica e sinestésica, diluindo a complexidade em nome da sensação. Helvécio Ratton se preservou desses descaminhos na adaptação de “O lodo” para o cinema. E se equilibrou no humor, na religiosidade, na alusão política e nas estruturas cinematográficas das narrativas de suspense psicológico.

*O filme “O lodo” estreia na próxima quinta-feira (13/4) nos cinemas do país. Este artigo foi escrito em 2022 pelo jornalista João Paulo Cunha, enquanto se tratava do câncer que provocou sua morte em 9 de setembro, aos 63 anos. Ele havia assistido à exibição para convidados promovida pelo diretor Helvécio Ratton. Formado em filosofia, psicologia, comunicação social e pedagogia, João Paulo foi editor dos cadernos EM Cultura e Pensar, do Estado de Minas, por 17 anos.

compartilhe