Jornal Estado de Minas

CINEMA

Will Smith tenta evitar que sua rejeição prejudique o filme 'Emancipation'


 
Quando um ator recebe o Oscar, é de se esperar que sua carreira ganhe impulso, que bons roteiros inundem sua mesa poucas semanas após a honraria. Não foi isso que aconteceu com Will Smith, que ganhou a estatueta de melhor ator este ano.




 
Ao contrário. Sua carreira foi posta em xeque já enquanto ele deixava o Dolby Theatre, em Los Angeles, com o homenzinho dourado em mãos. Isso porque, minutos antes da vitória, ele acertou um tapa no rosto do comediante Chris Rock, que achou de bom tom fazer piada com a condição médica da mulher de Will, Jada Pinkett Smith.

A turba nervosa da internet respondeu à agressão instantaneamente, se dividindo entre aqueles que defendiam o que seria um gesto de devoção e os que condenavam a violência televisionada para milhões de espectadores.
 
"Emancipation", em cartaz na plataforma Apple TV+, pode ser indicado ao Oscar 2023 (foto: Apple TV/divulgação)
 
 
Hollywood penou para navegar pela polêmica, chegou a paralisar projetos de Smith e a banir o ator do Oscar por uma década. Porém, por mais que as partes envolvidas tenham lentamente deixado o caso morrer, era de se esperar que ele ressuscitaria tão logo Smith retornasse às telas.




 
Nove meses depois, isso ocorre envolto em atenção, certo temor e elogios – nova indicação ao Oscar não parece ser delírio, mas possibilidade real – com “Emancipation: Uma história de liberdade”, filme de Antoine Fuqua que acaba de estrear na plataforma Apple TV+.
 
“Espero que o Antoine, que provavelmente fez o melhor trabalho de sua carreira, e toda a equipe do filme não sejam penalizados pelas minhas atitudes, até porque esta é uma história importante”, diz Smith em conversa com jornalistas, num raro momento em que driblou as muralhas que seu time ergueu para blindá-lo das inevitáveis lembranças do Oscar.
 
“Sou um artista consumido pela importância da mensagem que seu trabalho deixa”, acrescenta, no tom de penitência e amor ao próximo que pautou toda a conversa. “E a mensagem de Peter é sobre como se equilibrar na balança entre sofrimento e salvação.”




Inspiração para Cézanne

Peter é o nome do personagem de Will em “Emancipation”, criado a partir da figura real de Gordon ou “Whipped Peter”, o "Peter Chicoteado", como ficou conhecido.
 
Fotos dele com as costas desfiguradas pelo açoite rodaram o mundo, ajudando a comprovar o óbvio em meio à discussão abolicionista que se formava na segunda metade do século 19: que os negros usados como mão de obra nas Américas eram submetidos a abusos físicos extremos e rotineiros.
 
Este corpo estampa ainda o quadro “Cipião”, de Paul Cézanne, que compõe o acervo do Museu de Arte de São Paulo (Masp).
 
Detalhe do quadro 'Cipião', em que Paul Cézanne denunciou atrocidades infligidas a Gordon 'Whipped Peter' (foto: Reprodução)
 
 
O longa começa com o personagem sendo separado de sua família, numa plantação do estado americano de Louisiana. Ao longo de mais de duas horas, mostra o caminho tortuoso que Peter tomou para não ser capturado, até chegar a um acampamento nortista. Isso em meio à Guerra Civil Americana, que opunha abolicionistas e os confederados do sul, que queriam manter os negros como escravos.





Alistado, Peter – ou Gordon – inspirou, com suas fotos, milhares de outros negros a fazerem o mesmo, a fugirem dos brancos escravocratas e lutar ao lado do chamado Exército da União. O protagonista o faz para poder reencontrar a mulher e os filhos.
 
“Nós estamos retratando a escravidão nos Estados Unidos, mas este não é um problema americano, tampouco um problema de negros ou brancos. É uma questão humana. Trabalhar neste filme me fez perceber que temos questões em nossos corações que precisam ser resolvidas coletivamente, porque quando pensamos de forma individualista, tendemos a repetir os pecados do passado”, diz o ator.
 
Smith perdeu cerca de 20kg para fazer o filme. E, repetindo algo que faz desde os tempos seminais de “Um maluco no pedaço”, reivindicou uma parcela da produção, na esperança de fazer “acender nos corações dos espectadores algum nível de compaixão”.




 

 

Brasa na bochecha

Não será difícil fazer isso. A jornada do protagonista de “Emancipation” é interrompida com frequência por cenas atrozes de agressão. Nos primeiros 10 minutos, a câmera de Fuqua, que já retratou a violência em “Dia de treinamento” e “O protetor”, foca um escravo queimado com brasa ardente numa das bochechas.
 
Pouco depois, gritos desesperados se alternam com o som de chibatadas, causando espasmos de aflição no espectador sem nem precisar pôr na tela, de forma visual e explícita, o sofrimento ali retratado. Um dos personagens vistos em cena chega a levar as mãos às orelhas.
 
“Se você vê um negro com uma ideia, o ponha no chão”, diz um dos brancos da história, sintetizando a natureza selvagem do grande vilão de “Emancipation”, interpretado por Ben Foster. A ele se junta, no elenco principal, a zimbabuense-australiana Charmaine Bingwa, que frisou o clima de leveza e descontração naquele set pré-Oscar, apesar de toda a violência que os cercava. Foi o mecanismo que todos encontraram para enfrentar as pesadas páginas do roteiro.





“Emancipation” não é exatamente inovação numa indústria que, todos os anos, lança alguma trama de orçamento robusto e grandes pretensões sobre a escravidão nos Estados Unidos. É quase o mea culpa da Hollywood que tenta vender a imagem de progressista e libertária, mas que só recentemente passou a tomar ações concretas para aplacar a herança centenária desse mesmo sistema escravocrata.
 
Outro produtor do longa ilustrou bem essa falta de tato ao lidar com o problema, quando caminhou pelo tapete vermelho segurando a foto original de Gordon cheio de cicatrizes nas costas.
 
Joey McFarland, que é branco, disse que queria um pedaço do soldado junto dele na exibição do filme, mas foi prontamente criticado por expoentes do movimento negro, que viram na atitude a espetacularização do sofrimento.
 
McFarland se desculpou, disse que aquilo não passou de tentativa de frisar a importância de continuarmos debatendo o passado escravocrata e segregacionista dos Estados Unidos, e que, com o filme, queria dar ao público “a oportunidade de apreciar o heroísmo” daquela figura.




 
Atriz Charmaine Bingwa no lançamento de 'Emancipation' na Califórnia, em 1º de dezembro (foto: Michael Tran/AFP)
 

Protagonismo negro

A fala entra em conflito com o que a atriz Charmaine Bingwa disse em entrevista, ao tentar distanciar “Emancipation” de tantos outros longas que, no passado, abriram o debate sobre a escravidão e o racismo.
 
“Narrativamente, o longa é diferente, porque tem elementos de filmes de gênero, de aventura, por exemplo. Mas mais importante, 'Emancipation' mostra que os negros se salvaram, ao contrário do que reforçam várias narrativas sobre um suposto grande salvador branco”, afirma a atriz.
 
“É importante lembrarmos que nós fizemos isso por nós mesmos e, nos tempos polarizados em que vivemos, é imprescindível que a gente honre nosso passado”, defende.