Jornal Estado de Minas

CINEMA

Documentário "Kobra auto retrato" mostra o artista por trás dos murais


KOBRA. A assinatura, sempre em maiúsculas, acompanha murais enormes, muito coloridos. Boa parte deles retrata pessoas, célebres ou não. Malala, em Roma; Anne Frank, em Amsterdã; Alfred Nobel em Boras, Suécia; Bob Dylan, em Minneapolis; Elizabeth II, em Londres; Ayrton Senna, Racionais, Oscar Niemeyer, em São Paulo. São cerca de 3 mil murais em 35 países – somente em Nova York são 22; o mais recente, lançado em setembro passado, tem 336m colorindo a fachada da sede da Organização das Nações Unidas (ONU). 





Carlos Eduardo Fernandes Léo é o dono desta assinatura. Ele tem 47 anos, sofre de insônia crônica, podendo ficar até dois dias sem dormir. Sua saúde é frágil, decorrente de intoxicação por metais pesados.

Na adolescência, foi expulso do colégio, da casa dos pais, abusou do álcool e dos remédios. Sofreu muito de depressão. Há mais de 15 anos é casado com Andressa. A vinda de Pedro mudou sua vida – e ele foi reticente durante um bom tempo por não saber se daria conta de ser pai.

É sobre Kobra e também Carlos Eduardo o documentário “Kobra auto retrato”, de Lina Chamie, que estreia nesta quinta-feira (17/11), no UNA Cine Belas Artes. Pichador na juventude, grafiteiro mais tarde e hoje muralista, o paulistano de Campo Limpo, na periferia de São Paulo, é um dos nomes mais conhecidos da arte brasileira no mundo contemporâneo. Mas sua arte está nas ruas, onde ele começou e de onde nunca saiu.







Em primeira pessoa, Kobra narra sua trajetória, artística e pessoal, de frente para a câmera. A entrevista, gravada em estúdio durante dois dias de maio de 2019, é a espinha dorsal do documentário que une imagem, palavra e som em uma costura inteligente e imagética. É tudo direto, sem meias palavras – mas nada óbvio.

O projeto teve início em 2018. Também paulistana, Lina Chamie o admirava de longe, por meio dos trabalhos públicos. Um jornalista, Edson Veiga, apresentou os dois. “Na época, ele iria para Nova York fazer um projeto de 18 murais e queria alguém para filmar. Só que isto aconteceria dali a dois meses e não daria para eu levantar tudo o que precisava para fazer uma filmagem legal. Sugeri fazer um filme sobre a vida dele”, conta ela.

Insônia

Depois de realizar a entrevista, Lina maturou o material por três meses para daí fazer as imagens que enchem a tela – dos murais, de São Paulo, de passagens de Kobra pelo mundo. É a insônia, companheira desde sempre, quem dá início à narrativa. “A história dele é contada de um lugar solitário. Ele é autodidata e tem uma trajetória difícil não só por vir da periferia, mas por toda a vida. Como encontrar imagens para isto?”, acrescenta a realizadora.




Lina imaginou o filme como uma narrativa que se desenrola entre a realidade e o sonho. Em uma noite sem dormir, Kobra reflete sobre sua vida, do início até o ponto em que ele se encontra. Há muitas imagens noturnas, e a diretora o coloca também sob uma bicicleta, que, com uma câmera subjetiva, vai registrando os caminhos dele por São Paulo. 

“É como se ele estivesse visitando a si mesmo em uma noite solitária”, comenta Lina. A viagem parte da vida em família. O pai, estofador, nunca o compreendeu direito – só no final da vida os dois chegaram a um entendimento. Mas as cores das amostras de tecidos influenciaram Kobra, ele tem consciência disto.

Exclusão

A Escola Municipal Maurício Simão, no Campo Limpo, foi o lugar dos primeiros pixos – e também da primeira exclusão. O filme, na parte final, retorna a este espaço, agora com outro sentido. Ainda na juventude, sem escola e sem casa, Kobra acaba tendo sua chance ao pintar o Playcenter – com o dinheiro ganho, pagou as contas e comprou um Mustang 0 KM. Coisa de moleque, ele hoje diz.





Ao mesmo tempo em que viaja ao passado, o filme também coloca seu personagem no exterior, e as conquistas que vão se somando. Lina só não conseguiu uma coisa: que Kobra fizesse um autorretrato. “Ele me disse que não, que não se pintava e que buscava pessoas que o inspiravam. Mas, ao terminarmos o filme, feito em primeira pessoa e ele sempre sincero, eu vi que, no fim das contas, a relutância em se pintar permitiu que o filme ocupasse o espaço do autorretrato”, comenta.

Kobra diz ser "uma pessoa introvertida" que teve dificuldade de lidar com a câmera (foto: Imovision/Divulgação)

Quatro perguntas para...

Eduardo Kobra
Muralista

O filme de Lina Chamie é muito pessoal, você fala em primeira pessoa e sempre de frente para a câmera. Houve dificuldade neste processo?

Com certeza, pois a minha forma de comunicação é a pintura. Falar para as câmeras é algo diferente. Sou uma pessoa introvertida, então não foi fácil, tive que quebrar muitas barreiras. O que me deu mais segurança foi o próprio trabalho de Lina. Assisti a vários filmes dela e vi como é uma pessoa sensível e delicada.

Também aceitei passar por este desafio por conta do Instituto Kobra (que deve ser inaugurado em Itu, no interior de São Paulo, em 2023). A finalidade do projeto é transformar vidas de meninos e meninas de comunidades. Quis mostrar, através da minha história, que você pode se dedicar, fazer o que é certo, e que a minha vida não é só glamour, viagem, mas sempre pautada por desafios.





Sua obra é pautada por grandes murais e, em certo momento do filme, você fala da dificuldade de pintar telas pequenas. Como isto se dá?

Comecei na rua pintando murais grandes e cada vez mais foram surgindo convites para trabalhos maiores. Hoje, tenho dois no Guinness (o maior deles o chamado “Cacau”, de 2017, com 5,7 mil metros quadrados, na rodovia Castelo Branco, em Itapevi, São Paulo).

Trabalhar em menor escala é, para mim, uma dificuldade grande, pois tenho que usar outro tipo de equipamento e a pintura é mais delicada e demorada. Sou hiperativo, então me enquadro bem em trabalhos dinâmicos. Por incrível que pareça, levo o mesmo tempo para pintar uma tela pequena, de 2m X 2m, e uma parede de 20m X 5m. 

Quando você fala em tempo para pintar, está falando de quanto?

Todo mural tem uma tela original. Tenho que fazer testes de cor e depois é que passo a arte do papel para o muro. Fiz recentemente um sobre o câncer de mama no Rio de Janeiro.



Era de 5m X 12m e terminei em cinco dias. Mas o que acontece é que às vezes demoro mais para criar do que pintar (o muro). A criação é um processo de inspiração, posso levar semanas para fazer. Agora, o mural do Guinness levou três meses para ser feito.

Há muitos anos você foi diagnosticado com intoxicação por metais pesados em decorrência da inalação de tintas (mal que matou Cândido Portinari em 1962) e já, como afirma no filme, foi proibido de pintar pelos médicos. Está em seus planos dar uma parada?

Não existe a possibilidade de parar, e a pandemia deixou isso ainda mais claro. O período em que fiquei em casa, recluso, foi muito ruim. Meu trabalho está na rua, viajo o mundo todo e sou feliz fazendo isto. Não tenho outro objetivo na vida, então está fora de cogitação. Quando era jovem, não me protegia, não usava máscara, e hoje em dia me protejo.

Por isso tive intoxicação por metais pesados, que me trouxe uma série de problemas de saúde: insônia e intolerância alimentar. Para você ter uma ideia, não posso com dezenas de alimentos: nada de leite, glúten, feijão, ovos, aveia, gergelim. Açúcar me faz mal e não tomo nada de bebida alcoólica. Isto tudo foi gerado por intoxicação de tinta.



“KOBRA AUTO RETRATO”
(Brasil, 2022, 84min.). Direção: Lina Chamie. Estreia no UNA Cine Belas Artes, às 14h, na Sala 3 e às 19h, na Sala 1.