Jornal Estado de Minas

MÚSICA

Torquato Neto, o poeta da Tropicália

 
 
Carlos Ávila*
Especial para o Estado de Minas

Em 2022, completam-se 50 anos de morte de Torquato Neto. Em 10 de novembro de 1972, ele abriu o gás e partiu, com apenas 28 anos. Desespero de fio a pavio. E o pavio era curto. Deu em curto-circuito. O anjo torto, muito louco, o vampiro lírico da Tropicália se esvaiu na luz da manhã como o Nosferatu expressionista de Murnau. Torquato Neto (1944-1972) se matou de madrugada, num apartamento no Rio, onde morava com a mulher, Ana, e o filho Tiago, depois de comemorar seu aniversário com amigos num bar. 





Poeta sem livro publicado em vida; letrista de música (com parcerias com Edu Lobo, Gil, Caetano, Macalé e outros; são dele, por exemplo, as letras das canções “Pra dizer adeus”, “Geleia geral”, “Mamãe coragem” e “Let’s play that”); ator-vampiro em filme underground, em Super 8, de Ivan Cardoso; editor, com Waly Salomão, da revista Navilouca; crítico de MPB e de cinema; jornalista da Última Hora, onde manteve a coluna “Geleia Geral” (nela acompanhava e divulgava todo o movimento da contracultura, do “desbunde” e da resistência cultural sob a ditadura).

Sim, “Geleia Geral”: hoje a expressão está vulgarizada e introduzida nas linguagens falada e escrita. Primeiro, virou letra de canção tropicalista (versos de Torquato e música de Gilberto Gil) – incluída no disco-manifesto “Tropicália – Ou Panis et circensis”, de 1968 – e, mais adiante, título da coluna de jornal. Depois disso, a expressão entrou na circulação sanguínea da língua portuguesa no Brasil. 

A expressão foi criada pelo poeta, tradutor e ensaísta Décio Pignatari. Surgiu numa discussão deste com Cassiano Ricardo, ainda em 1963, e acabou sendo inserida no prefácio do número 5 (o último) da revista de vanguarda Invenção, em 1967. Torquato adorava o texto de Pignatari: “Aquele texto tem tudo”, afirmou em conversa com Gil e Augusto de Campos, reproduzida no livro “Balanço da bossa”. 




 
Torquato Neto e Gilberto Gil, autores de 'Geleia geral', obra-prima da Tropicália (foto: Vitrine Filmes/divulgação)
 

Torquato deixou tudo estilhaçado, fragmentado como ele próprio – depressivo, suicida e radical esteticamente (também adepto do desregramento rimbaudiano, se ligou no álcool e nas drogas). Entre tudo que produziu, se realizou mais nas letras de canções, criativas e bem-estruturadas. No restante – poemas e escritos de todo tipo; alguma prosa; trabalhos visuais; os textos jornalísticos rápidos, sintéticos e improvisados; as investidas no cinema e a militância crítica etc. –, ressalta o “inacabado”, a pressa e a pressão, a urgência de viver e o “sonho desesperado” daquela antiga canção (com música de Caetano): “Um dia depois do outro/ao teu lado ou sem ninguém/no mês que vem/neste país que me engana/ai de mim, Copacabana/ai de mim...”. 

Na definição de Pignatari, “Torquato era um representante da nova sensibilidade dos não especializados”, ressaltando que seu processo criativo incluía montagem, colagem e bricolagem. De fato, o poeta utiliza paráfrases e paródias – lança mão de citações e apropriações variadas nos seus escritos. “Geleia Geral” seria o exemplo por excelência desse procedimento, uma espécie de colcha de retalhos textuais (onde se destacam expressões cunhadas por Oswald de Andrade): “A alegria é a prova dos nove/e a tristeza é teu porto seguro/minha terra é onde o sol é mais limpo/e Mangueira é onde o samba é mais puro/tumbadora na selva selvagem/Pindorama, país do futuro”. 

Já em “Let’s play that” (com música de Macalé), Torquato começa parodiando o Drummond do “Poema de sete faces” (“Quando eu nasci/um anjo louco, muito louco/veio ler a minha mão...”) e termina citando duas linhas do “Inferno de Wall Street”, de Sousândrade, fundidas por Augusto de Campos: “Desafinar/o coro dos contentes”. Esse lema-poema também entrou na circulação sanguínea de nossa língua.




 
 

Curiosamente, é toda essa fragmentação algo caótica (textual e visual) que atrai no seu legado, reunido postumamente em livros como “Os últimos dias de paupéria”, coordenado por Waly Salomão e Ana Maria Silva de Araújo (então viúva de Torquato), e “Torquatália” – dois volumes organizados por Paulo Roberto Pires. Ou ainda na antologia “Torquato Neto – Essencial”, preparada por Italo Moriconi, e nas edições produzidas por George Mendes (primo de Torquato e curador de seu acervo, em Teresina), com textos inéditos e estilhaços poéticos extraídos de cadernos deixados pelo trovador da “Tristeresina” (deve-se registrar também o CD “Todo dia é dia D”, reunindo 14 canções, lançado pelo selo Dubas, de Ronaldo Bastos). 

Algo na escrita de Torquato anunciava e antecipava a linguagem antilinear e entrecortada da internet, onde tudo (texto, imagem, som etc.) se cola e se descola, se corta e se recorta, se compõe e se decompõe rapidamente.  Daí a atração que sua produção exerce sobre os jovens, sobre todos que encontram ali muito do que hoje se identifica como multimídia – também como conceitual e até performático. 

Afora isso, a postura anticonvencional e certa mitificação, e mesmo fetiche, relacionados à imagem do poeta-suicida (como ocorreu igualmente com Maiakovski e Sá-Carneiro), alimentam o interesse pelo “personagem” Torquato – piaui- ense que se soltou para o mundo (via Salvador, Rio, São Paulo, Londres-Paris e novamente Rio, onde morreria). 





Torquato e Scarlet Moon no filme 'Nosferato no Brasil' (foto: Reprodução)
Em vida, o poeta se ligou não só aos amigos baianos da música popular, como também a artistas plásticos, como Lygia Clark, Hélio Oiticica e Luciano Figueiredo; aos poetas concretos (Irmãos Campos e Pignatari); ao teatro de José Celso e seu grupo Oficina; ao cinema-invenção de Bressane e Sganzerla – também ao “terrir” (terror/humor paródico) de Ivan Cardoso, que dirigiu “Nosferato no Brasil”, no qual Torquato atuou como vampiro: “Um vampiro ensolarado, malandro e desinibido”, segundo Haroldo de Campos, “tropicalizado em cores berrantes, para inveja de seus cinzentos colegas dos castelos dos Cárpatos”. Torquato foi biografado por Toninho Vaz e também foi tema de um filme-documentário, “Todas as horas do fim”, dirigido por Eduardo Ades e Marcus Fernando – com depoimentos e imagens raras do poeta.   

“Morre jovem quem é amado pelos deuses” (Quem di diligunt, adolescens moritur – Plauto, 254-184 a.C.). Torquato, assim como Mário Faustino – também poeta e piauiense, morto 10 anos antes dele, num desastre aéreo –, teve sua trajetória interrompida, cortada tragicamente. Ficaram os seus “disjecta membra”, fragmentos que sugerem um projeto de livro – o esboço de uma poética. 

Torquato, figura algo genial e atormentada, que escreveu com sabedoria: “Um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela”.

Torquato viveu poeticamente. Vida-obra (que guarda alguma relação com a de Pagu, a brava Patrícia Galvão, escritora-jornalista inventiva e combativa, que também não publicou nenhum livro). Torquato viveu “tranquilamente/todas as horas do fim” – como escreveu no seu belo “Cogito” (que traz algum “eco” de Sá-Carneiro).

Sim, cogito ergo sum: penso – poeto – logo existo. Logos. Palavra escrita ou falada (também cantada, no caso de Torquato): “Toda palavra guarda uma cilada”. Palavra-cilada: Torquato torto. Palavra calada: Torquato morto. Mas vivo, muito vivo, aqui e agora, na palavra POETA.

*Carlos Ávila é poeta e jornalista. Autor de “Bissexto sentido”, “Área de risco” e “Poesia pensada”, entre outros. Foi editor do Suplemento Literário/MG