Jornal Estado de Minas

ARTES CÊNICAS

Cia. de Dança Palácio das Artes lança seu manifesto por um Brasil melhor



Há um século, mais especificamente de 13 a 18 de fevereiro de 1922, Heitor Villas-Lobos, Victor Brecheret, Di Cavalcanti, Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Anita Malfatti, entre outros talentos, se reuniram no Theatro Municipal de São Paulo com o intuito de apresentar à sociedade uma nova forma de fazer arte.





“Para muitos de vós, essa curiosa e sugestiva exposição que gloriosamente inauguramos hoje é uma aglomeração de horrores”, anunciou Graça Aranha, cujo discurso passou para a história como a abertura da Semana de Arte Moderna. O escritor já sabia que o Modernismo, no primeiro momento, seria rejeitado pela sociedade.

Passado o estranhamento inicial, o movimento vingou – em sua segunda fase, a partir de 1930, trouxe inovações marcantes para a cultura brasileira. O Modernismo, inclusive, teve forte presença na política cultural do governo Getúlio Vargas, iniciado com a Revolução de 30 e consolidado pela ditadura do Estado Novo (1937-1945).

Contradições à parte, a Semana de 22 inspira várias criações em seu centenário. Um deles é o projeto Modernismo em Minas Gerais, da Fundação Clóvis Salgado, que tem desenvolvido uma série de eventos.




Oswald e Pau-Brasil em foco

Neste fim de semana, a Cia. de Dança Palácio das Artes (CDPA), em comemoração aos seus 50 anos, vai apresentar o espetáculo “m.a.n.i.f.e.s.t.a.”, que ficará em cartaz neste sábado (5/11) e domingo (6/11), no Grande Teatro.

A fonte de inspiração foi o “Manifesto Pau-Brasil”, publicado por Oswald de Andrade no jornal carioca Correio da Manhã, em 1924, dois anos depois da Semana de 22.

“A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos”, escreveu o modernista.

As diretoras Kenia Dias e Marise Dinis propuseram aos 17 bailarinos escreverem o próprio manifesto. Afinal, se a poesia está nos fatos e o cotidiano é um fato estético, por que não transformar em espetáculo a realidade pessoal de cada integrante do grupo?

Dessa forma, os textos dos bailarinos foram a matéria-prima de “m.a.n.i.f.e.s.t.a.”,  performance fruto de criação coletiva.





“Quando trabalhamos coletivamente, temos que abrir mão de algumas ideias e juntar outras. No caso dos manifestos dos bailarinos, aconteceu isso. Mas não deixamos nada de fora, o que não foi incorporado na coreografia está na música ou no figurino”, explica Marise Diniz, destacando o trabalho de Patrícia Bizzotto e Camila Moreno – responsáveis, respectivamente, pela trilha sonora e figurino.
 
Criação coletiva é a marca registrada de "m.a.n.i.f.e.s.t.a.", que ficará em cartaz sábado e domingo, no Palácio das Artes (foto: Paulo Lacerda/divulgação)

Parceria "pandêmica"

É a primeira vez que as duas diretoras trabalham juntas. Ambas haviam integrado a Cia. de Dança, mas em momentos diferentes e funções distintas. A aproximação ocorreu depois que Kenia e Marise criaram projetos audiovisuais durante a pandemia, a pedido da companhia.

“Desenvolvi o ‘Órbita-corpo-câmera’, no qual planejei a coreografia a partir de imagens da Nasa de uma câmera que sai da Terra, vai até a estratosfera e volta em quatro minutos”, conta Kenia.





O projeto de Marise seguiu outra linha. “Na época, estávamos falando muito sobre acessibilidade – em todas as suas formas de interpretação. Portanto, fiz entrevistas com pessoas que nunca tinham assistido a um espetáculo de dança, perguntando o que elas queriam ver caso fossem assistir a alguma performance. A partir das respostas, pensei em como desenvolver as coreografias com os bailarinos”, explica a autora.

Os dois trabalhos, embora completamente diferentes, chamaram a atenção de Cristiano Reis, diretor da CDPA. O convite foi feito por ele e prontamente aceito. A dupla começou a trabalhar em agosto deste ano. Kenia, que morava em São Paulo, mudou-se para Belo Horizonte a fim de se dedicar à montagem.

“Nós duas temos muitas semelhanças, o que ajudou muito. A Marise tem uma preocupação, que também é muito minha, com relação a todo o processo de criação, e não apenas ao resultado”, ressalta Kenia.





“Outro aspecto que nos uniu é o fato de nós duas não estarmos preocupadas em criar uma coreografia, mas em criar material para que os próprios bailarinos pudessem desenvolver a dança”, explica a diretora.
 
Inquietações e sonhos individuais dos bailarinos contribuíram para o novo espetáculo da Cia. de Dança Palácio das Artes (foto: Paulo Lacerda/divulgação)
 

As diferenças foram importantes para o resultado final de “m.a.n.i.f.e.s.t.a.”. Como Kenia e Marise trabalharam em funções distintas na companhia, trouxeram conhecimentos que foram se complementando ao longo da concepção do espetáculo.

“A Kenia tem muita experiência com direção, o que não tenho. Além disso, algumas ousadias que ela propunha para os bailarinos me instigavam muito”, conta Marise, que, por sua vez, levou para a montagem sua experiência como ensaiadora e professora.





Ambas são unânimes em ressaltar que o espetáculo trata do corpo coletivo, conceito que encontra eco entre os integrantes da CDPA.

Ivan Sodré (à esquerda) afirma que espetáculo é político, "não no sentido partidário, panfletário", mas de propor mudanças (foto: Paulo Lacerda/divulgação)

Corpo coletivo em ação

Integrante da companhia há 23 anos, o bailarino Ivan Sodré diz que “m.a.n.i.f.e.s.t.a.” consolida o grupo como “um corpo coletivo político”. E explica: “Político não no sentido partidário, panfletário, mas no sentido de agir, de propor mudanças para pautas sociais que estão em discussão”.

Neste 2022, Ivan completa 50 anos, assim como a Cia. de Dança Palácio das Artes. O manifesto que escreveu e serviu para a criação da coreografia traça o paralelo entre sua vida e seu trabalho.

“O resultado final é a mistura do meu manifesto com os de outros bailarinos”, conta Ivan. “Kenia e Marise pediram para que a gente fosse ‘roubando’ frases dos manifestos dos outros para colocar no nosso. No final, ficou o questionamento: o indivíduo influencia o coletivo ou o coletivo influencia o indivíduo?”, comenta Ivan.

Outras temáticas foram abordadas pelos dançarinos. Bárbara Maia, de 29, ingressou na CDPA em março deste ano e participou de cinco espetáculos. Levou para “m.a.n.i.f.e.s.t.a.” indagações a respeito do poder sobre os corpos alheios.





“É um questionamento sobre onde os corpos podem circular sem ser violentados”, explica Bárbara.

Na condição de mulher branca, heterossexual e cisgênero, afirma ter privilégio de andar por locais onde pessoas em outras condições não podem transitar. Mesmo assim, ela se sente insegura em muitos lugares por onde passa.

Apesar disso, a bailarina vê um cenário positivo para o futuro, sobretudo em relação às temáticas abordadas em “m.a.n.i.f.e.s.t.a.”.

“A performance é uma forma de convocar as pessoas à ação coletiva para que, juntos e juntes (sic), possamos inventar outros mundos”, afirma Bárbara Maia.

“M.A.N.I.F.E.S.T.A.”

Direção: Kenia Dias e Marise Dinis. Coreografia e performance: Cia. de Dança Palácio das Artes. Neste sábado (5/11), às 20h30, e domingo (6/11), às 19h. Grande Teatro do Palácio das Artes. Avenida Afonso Pena, 1.537, Centro. Entrada franca. Informações: (31) 3236-7400