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Estado de Minas LITERATURA

A corajosa jornada literária da 'etnóloga' Annie Ernaux, vencedora do Nobel

Livros da autora francesa, pioneira da autoficção, rompem com o 'belo' e o 'inventado' para expor memórias pessoais que dialogam com a experiência coletiva


08/10/2022 08:05 - atualizado 08/10/2022 08:07

Escritora Annie Ernaux olha para o lado
Annie Ernaux, com sua "etnografia de si", usa a memória pessoal como matéria-prima dos livros que escreve (foto: Sylvain Estibal/AFP)

FRANCESCA ANGIOLILLO – FOLHAPRESS 


“Se não escrevo as coisas, elas não se completam. Terão apenas sido vividas.”

À guisa de epígrafe, assim Annie Ernaux, laureada com o Nobel de Literatura na quinta-feira (6/10), abre seu livro mais recente, “O jovem”. Pode-se dizer que, na frase, está contida sua profissão de fé.

Com a premiação, a Academia Sueca mais uma vez reconhece o valor da experiência e da não ficção dentro do ofício literário, que já havia afirmado ao premiar a belarussa Svetlana Aleksiévitch em 2015.

No entanto, agora o faz numa chave muito diferente –  se quisermos, mais facilmente identificável como literária. Se a obra de Aleksiévitch se inscreve no quadro mais distanciado do jornalismo, trabalhando a partir do relato coletado, a de Ernaux, de 82 anos, sai do particular para tocar o coletivo.

Memória pessoal

Ao reconhecer o trabalho da escritora francesa, o comitê destacou a coragem e acuidade clínica pela qual desvenda as raízes, as estranhezas e constrangimentos coletivos ligados à memória pessoal. De memória pessoal se trata a obra de Ernaux, e de seu trânsito para a inscrição na história.

“A imaginação não tem lugar nos meus livros”, disse a autora a esta repórter quando do lançamento de seus dois primeiros títulos pela editora Fósforo, “O lugar” e “Os anos”,  no ano passado.

A recusa, pois, ao mecanismo mais associado à literatura, o da invenção, dá um nó na cabeça dos que insistem em associar o belo à ficção e a chamar de literatura somente o inventado. Em que lugar se encaixa a prosa de Ernaux, agora alçada ao mais alto patamar da condecoração literária?

Ernaux não à toa é tida como precursora da autoficção, gênero dos romances que se nutrem de maneira pouco disfarçada da experiência pessoal, jogando com os limites da identificação entre personagem e autor, embora ela própria prefira catalogar como “etnografia de si” os títulos nos quais repassa suas vivências.

Com “O lugar”, livro de 1983 no qual, após a morte do pai, vendeiro em um vilarejo normando, retrata sua figura em paralelo à questão de sua ascensão social por meio da intelectualidade, ela inventou uma espécie de “romance de si” de cunho sociológico.

O livro, escrito em uma prosa descarnada, que comove sem nenhuma concessão ao sentimentalismo, é, segundo a própria autora, aquele pelo qual se deve começar a ler sua obra.

Décadas mais tarde, seu pioneirismo nesse gênero encontraria ecos na obra de Didier Eribon e Édouard Louis. A genealogia é clara, como o leitor brasileiro pode comprovar em livros como “Retorno a Reims”, publicado pela Âyiné, e “O fim de Eddy”, pela Tusquets.

Bourdieu e o lugar social

“La place”, título original de “O lugar”, tem duplo sentido – a praça do vilarejo e também, como optou a tradução, o lugar. Escolha muito acertada se considerarmos a fagulha detonadora da inovação em Ernaux, que ela mesma localiza na obra de Pierre Bourdieu.

 

Lido pela jovem professora em pleno movimento de 1968, Bourdieu explorou o conceito de lugar social e do deslocamento do sujeito em seus escritos. É o que Ernaux faz em sua literatura.

Aqui cabe, então, frisar um aspecto que não pode ficar de fora, que é o lugar da mulher.

Os limites de gênero e o seu questionamento são marcantes em sua obra, embora não sejam seu tema único. Como contraexemplo, podemos lembrar o registro que ela faz de visitas a um hipermercado da região metropolitana parisiense, em “Regarde les Lumières, mon amour”.

Ainda naquela entrevista no ano passado, a escritora reivindicou seu lugar de vanguarda na corrente feminista, a partir de “La femme gelée”. 

Nesse que foi seu terceiro livro, em 1981, a escritora percorre sua infância entre mulheres fortes e independentes, que a colocaram fora dos estereótipos da desigualdade de gênero.

No Brasil, foi publicado, pela Fósforo, “O acontecimento”, em que narra o aborto clandestino a que se submeteu em 1963. O livro foi transposto para o cinema por Audrey Diwan e venceu o Leão de Ouro em Veneza no ano passado.

Menopausa e gozo

“O jovem”, lançado há pouco na França e em breve no Brasil, recupera a experiência amorosa e sexual, aos 54 anos, com um estudante quase 30 anos mais jovem do que ela.

“Como você pode sair com uma mulher na menopausa?” era a pergunta que, suspeita a autora, o amante ouvia dos amigos. A mulher na menopausa que busca ativamente, e obtém, o gozo.

Se o comitê do Nobel elogiou a coragem de Ernaux, o fez pelo arrojo de renegar a imaginação mas também por notar a constância de sua inquirição dos limites sociais.

Quanto aos limites da ficção, estes talvez não estejam tão fixados. A autora teceu, na conversa com esta repórter, uma indagação que agora remetemos ao leitor.

Mencionando a necessidade que demonstramos, nas redes sociais, de nos colocarmos como “seres ficcionais”, procurando “inventar uma história”, ela afirmou que quis separar bem da ficcionalização de si.  “Mas será que, mesmo sem querer, a forma não é ficção?”, diz.


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