Jornal Estado de Minas

CINEMA

Documentário sobre os que vão embora de casa abre a mostra CineBH



Nos últimos 20 anos, o diretor Marcos Pimentel definitivamente não teve residência fixa. Natural de Juiz de Fora, Zona da Mata mineira, ele se mudou para Belo Horizonte no início da vida adulta. Contudo, passou os últimos anos mais viajando pelo mundo do que na cidade em que escolheu para se estabelecer.




 
“Viajar faz parte de mim”, afirma o diretor. “Sou documentarista. Tenho de ir onde as histórias estão”. Foi numa dessas viagens, em busca de histórias que pudessem render algum filme, que  ele se deu conta de que vivia uma crise de identidade: tendo nascido em um lugar, decidido viver em outro onde, na prática, ela não se fixou, de onde ele era, afinal?

De pronto, o documentarista responde que é da cidade do interior mineiro. Afinal as primeiras lembranças que lhe vêm à mente são a dinâmica familiar na casa de seus pais, os costumes de cada membro da família e os pratos que comia na infância. 
 
'Os ossos da saudade' ouve sete pessoas cujas trajetórias se relacionam com o Brasil e procura traduzir em imagens suas sensações em relação à terra natal (foto: Matheus Rocha/Divulgação)
 
 
Mas, pensando mais um pouquinho, ele se recorda de que, nas últimas vezes em que esteve em sua cidade natal, não teve a sensação de pertencimento. Por mais que os familiares e amigos estivessem ali diante dele, ele não se sentia mais como parte integrante da dinâmica da casa. Constatou ainda que os modos e costumes das pessoas com quem conviveu na infância haviam mudado com o tempo.

“É como se a gente percebesse que não pertence mais àquele lugar”, comenta. Munido dessa sensação estranha - uma espécie de orfandade mesclada com nostalgia -, Pimentel decidiu procurar outras pessoas que sentissem o mesmo, a fim de transpor para as telas esse sentimento difícil de apreender. O resultado de sua busca se concretizou no longa “Os ossos da saudade”, que terá pré-estreia nesta terça-feira (20/9), no Cine Theatro Brasil Vallourec, na abertura da 16ª edição da Mostra CineBH.




 


Dificuldade para encontrar quem compartilhasse o mesmo dilema ele não teve. No entanto, era necessário encontrar algum ponto que interligasse todas as histórias.

“Decidimos, então, estabelecer o Brasil para ser esse ponto convergente. No documentário, temos sete personagens de nacionalidades diferentes, mas que têm algum tipo de relação afetiva com o Brasil”, afirma.
 
Rodado em Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde e no Brasil, o longa traz as perspectivas de Abdel Rassul, Adelmisa Brandão, Húlia Samara, Joana Carneiro, Rodrigo Almeida, Rosânia da Silva e Zé Melo. Eles são brasileiros ou estrangeiros que moraram no Brasil em algum momento de suas vidas e têm na memória um lugar carinhoso para essa experiência. 




 
O conflito que sobressai nos personagens de “Os ossos da saudade” se relaciona com a noção de desterro. “Por mais que eu tenha os meus amigos e a família que me acolheu por aqui, tenho que lidar com a solidão”, afirma, em certo momento, Húlia Samara, angolana que partiu de sua terra natal para o Brasil.
 
O diretor procura traduzir esse conflito não apenas com os depoimentos dos entrevistados, mas também com imagens. Uma cena muito marcante - para o próprio diretor, inclusive - é um plano no qual caranguejos andam pela orla da praia e, a todo momento, são atingidos pela maré que está subindo. Os crustáceos, entretanto, não se deixam levar, cravam as patinhas na areia e aguardam as ondas baixarem para seguir com a caminhada.
 
“As imagens são muito metafóricas. Quando saímos da nossa cidade ou do nosso país, mantemos em nossa memória aqueles momentos que vivemos enquanto estivemos lá. Quando retornamos, acreditamos, em função dessa memória, que as coisas estarão do mesmo jeito que elas estavam quando fomos embora. E o curioso é que nós mantemos firmes essa convicção, mesmo quando tudo ao redor nos mostra que as coisas mudaram”, diz.




 
Embora seja um filme de abordagem intimista e, na teoria, fácil de ser feito, Marcos Pimentel diz que ele e sua equipe passaram por muitas dificuldades durante a gravação. Uma delas foi a odisseia que a turma enfrentou para subir em um vulcão inativo levando todo o equipamento, que, além de pesado, ocupa muito espaço. 
 
Outro problema foram os ventos fortes de Cabo Verde, que eram captados pelo microfone e não deixavam Zé Melo (o personagem de nacionalidade cabo-verdense) falar. Isso fez a equipe perder horas e mais horas, que poderiam ter sido aproveitadas com gravações.

 
Documentário

Os maiores entraves, contudo, apareceram em Angola. De acordo com o diretor, o país é extremamente burocrático e pode colocar um diretor estrangeiro na situação de se ver instado a pagar propina para a liberação de uma gravação já devidamente autorizada pelas autoridades locais.




“Eles chegam com aquela conversa: ‘O amigo está te ajudando, logo você tem que ajudar o amigo também’. Nossa sorte é que tínhamos na equipe pessoas naturais da Angola, que já sabiam como lidar com esse tipo de situação. Mas era chato porque tínhamos que ir conversar com as autoridades, explicar que tínhamos autorização para filmar ali, mostrar toda a documentação. Isso fez a gente perder muito tempo”, relembra.
 
O documentarista, no entanto, diz ter apreço pelo país africano e afirma que os sorrisos mais bonitos que viu foram em Angola. “E em Moçambique”, emenda.

Tendo tido sessões de pré-estreia em Pernambuco, Brasília e Paris, “Os ossos da saudade” chega a Belo Horizonte em um contexto especial para o diretor. Isso porque o CineBH é realizado junto com o Brasil CineMundi, uma plataforma de viabilização de projetos via coprodução, da qual ele participou com a ideia do seu longa, que foi premiada.
 
“Poder exibir em Belo Horizonte durante este evento é muito especial, justamente porque o CineMundi acreditou na gente, o que nos estimulou a montar o filme”, afirma. Concebido há 10 anos apenas como uma ideia vaga, “Os ossos da saudade” só foi ganhando forma a partir de 2018, quando foram realizadas as pesquisas para encontrar as personagens e idealizadas as imagens que poderiam ser feitas. 




 
O trabalho de Marcos como curador do Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa (CinePort) fez com que ele já soubesse correr atrás de quem poderia ajudá-lo em cada um dos países em que o filme foi rodado. Concluída a pesquisa e a escolha dos sete personagens, começaram as gravações.

Tudo foi filmado em 2019, de modo que a pandemia de COVID-19 não atrapalhou a filmagem do longa.
Depois das sessões de pré-estreia, “muita gente veio falar que se identificou com o filme. Falavam que haviam se reconhecido em um personagem ou então que viam nesse personagem algum parente ou amigo”, conta o diretor.
 
Terminada a exibição no Festival CineBH, o documentário segue para o circuito comercial, a partir de quinta-feira (22/9).
 

 
Festival exibirá gratuitamente mais de 100 filmes

 
A 16ª edição da Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte (CineBH) começa nesta terça-feira (20/9) e fica em cartaz até domingo (25/9). Serão exibidos mais de 110 filmes nacionais e internacionais; pré-estreias e mostras retrospectivas, além da programação de oficinas, workshops, laboratórios, masterclasses, debates e painéis.




 
Os filmes estão divididos nas mostras Continentes, Brasil-Longas, Brasil-Curtas, CineMundi, Diálogos históricos, Praça, Homenagem, Cidade em movimento, Mostrinha e Cine-escola. Entre os títulos já conhecidos pelo público estão “Eduardo e Mônica” (2020), de René Sampaio; e os mineiros "Temporada" (2018), de André Novais Oliveira; e "Marte Um" (2022), de Gabriel Martins, este último representante do Brasil no Oscar.
 
O festival terá sessões no Cine Humberto Mauro, UNA Cine Belas Artes, Teatro Sesiminas, Centro Cultural Minas Tênis Clube, Sesc Palladium, MIS Cine Santa Tereza, Teatro Espanca!, Cine Theatro Brasil Vallourec. Também serão montados espaços especiais, como a tenda na Praça da Liberdade.
As atividades do CineBH são gratuitas e a programação completa está no site oficial do evento