Jornal Estado de Minas

CINEMA

Filme de Laís Bodanzky mostra Pedro I como 'herói tóxico' da Independência


Impotente, epilético, paranoico e, principalmente, sozinho. Este é Pedro I (1798-1834) no filme “A viagem de Pedro”, que chega nesta quinta-feira (1º/9) aos cinemas. Primeira ficção histórica de Laís Bodanzky, traz Cauã Reymond no papel-título.



O longa apresenta um retrato íntimo do ex-imperador na viagem de retorno a Portugal, entre abril e junho de 1831, dias após abdicar o trono do Brasil em favor de seu filho, Pedro de Alcântara, então com 5 anos.

“Mesmo escolhendo um personagem muito conhecido, a maior parte do que está no filme não está em livro nenhum. Mas nada foi inventado do zero, não é um grande delírio. (O roteiro foi escrito) A partir de informações pinceladas de documentos de época, uma história que não está nos livros oficiais”, diz a cineasta.

Torre de Babel no oceano

Na narrativa, acompanhamos Pedro I (Reymond) recém-embarcado com a segunda mulher, Amélia de Leuchtenberg (Victoria Guerra), na fragata inglesa que atravessaria o Atlântico. A viagem é uma Torre de Babel. Na tripulação de 250 pessoas misturam-se membros da corte, oficiais, serviçais e negros escravizados.

Fala-se em português, inglês, francês e iorubá, além de dialetos africanos. Há alguns momentos em alemão, durante narração feita por Dona Leopoldina (Luise Heyer), a primeira mulher do personagem.





“Tinha o desejo de falar sobre um Brasil de tempos atrás, mas com olhar contemporâneo. A ideia nunca foi a de reverenciar Pedro”, continua a diretora. A chegada aos cinemas, no início da comemoração do bicentenário da Independência, não foi planejada – a pandemia atrasou o lançamento do longa.

“Quando a data se aproximou, não deu para fingir que não estava acontecendo. Mas o filme foi feito para questionar as estátuas, quem narra as histórias e como elas foram registradas. A data (o bicentenário) tem de ser falada, mas não festejada. Tem de ser motivo de reflexão. Será mesmo que houve uma Independência? Às custas de quê?”, questiona Bodanzky, que considera “absurda” a vinda do coração de Dom Pedro ao país.

O personagem que o filme traz à tona é “um homem tóxico”, continua a diretora. “Duzentos anos atrás, o que era esperado de um homem em meio à estrutura patriarcal, machista, um opressor.”




 

 

Cauã foi Dom Pedro 'muito macho'na escola 

Cauã Reymond, além de protagonizar o filme, é também um de seus produtores. “Tudo o que li e aprendi sobre Dom Pedro (para fazer o projeto) não veio da sala de aula, mas de pesquisas, para que eu tivesse um personagem desconstruído”, diz ele, que, na infância, interpretou o imperador no colégio.

“Nem sabia que seria ator. E fiz o herói, muito macho, no cavalo branco que era uma vassoura. Foi interessante fazer agora o personagem, falando sobre masculinidade tóxica, de racismo estrutural, ausência de feminismo.”

O filme começa a partir da observação de uma estátua de Napoleão Bonaparte (1769-1821). Dom Pedro está se despedindo do filho, o futuro Dom Pedro II. Na sequência, já vemos o personagem dentro da fragata, ouvindo os gritos de brasileiros que o queriam fora do Rio de Janeiro.




 
A mulher, Dona Amélia, sofre enjoos com o movimento do barco. Tenta se aproximar do marido como pode, mas ele a repudia, pois está sofrendo de impotência.

Com a fragata em curso, Pedro tenta se relacionar com parte da tripulação: o comandante Talbot (Francis Magee), homem de poucos escrúpulos e muitas histórias; o contra-almirante Lars (Welket Bunguê), preto que não é aceito pela população negra que trabalha no barco e só se comunica em inglês; o chef (Sérgio Laurentino), que a princípio recusa a presença de Pedro, causando-lhe medo; Tigre (Denangowe Calvin), jovem que traz no corpo as marcas da escravidão; e Dira (Isabél Zuaa), mulher negra que trata da sexualidade como algo sagrado e será essencial para que Pedro reencontre o prazer.

Lembranças e delírios brasileiros

Em meio à viagem, o protagonista tem lembranças do passado no Brasil, das relações com Dona Leopoldina e Domitila, a Marquesa de Santos (Rita Wainer), assim como delírios com o irmão Miguel (Isac Graça), com quem disputa o trono português.

“Foi um desafio fazer um filme com muitas línguas, mas sempre foi uma certeza, pois eu queria me aproximar ao máximo do Brasil da época. Era um Brasil em que a maior parte da população era preta, população esta arrancada de suas origens, de sua cultura e religião. Além disso, o Brasil tinha adotado o protocolo da corte, francês, e a embarcação era da Inglaterra. Então, o filme reflete esta salada cultural”, acrescenta Bodanzky.



Amélia de Leuchtenberg (Victoria Guerra) é rejeitada pelo marido, que enfrenta a impotência sexual (foto: Fábio Braga/divulgação)

Cineasta desistiu de ler os diários do imperador

Não há documentação histórica sobre a viagem de 1831, o que existe está nos diários de Dom Pedro – a produção do filme não teve acesso a eles. “A partir de certo momento, já não quis ler o diário para ter liberdade de poder imaginar como seria esse homem, no meio do Atlântico, visitando seus demônios”, diz a diretora.

Para Laís Bodanzky, o envolvimento do personagem com rituais de religião de matriz africana seria possível. “Ele era conhecido por ser informal, gostava de ficar na cozinha conversando com os serviçais. E, na época, 100% eram pessoas pretas. Se ele de fato avançou e participou de algum ritual, é uma licença poética do filme. Mas acho que o faria, pelas próprias características dele. E acho que isso (a sequência no filme) é educativo para o Brasil de hoje”, finaliza a cineasta.

“A VIAGEM DE PEDRO”

(Brasil, 2021, 97min., de Laís Bodanzky, com Cauã Reymond, Luise Heyer e Victoria Guerra) – Estreia nesta quinta (1º/9), no Centro Cultural Unimed-BH Minas, às 18h15; e no UNA Cine Belas Artes, às 14h e 18h30.