Jornal Estado de Minas

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Série "Sandman" é uma ótima viagem ao Mundo dos Sonhos

Uma das histórias em quadrinhos mais importantes de todos os tempos ganhou finalmente uma adaptação para as telas: direto do Mundo dos Sonhos, a aguardada série “Sandman” estreou sua primeira temporada na Netflix, na última sexta-feira (5/8), baseada na HQ de mesmo nome da DC Comics.





Não é possível falar sobre a série sem discorrer sobre a obra original, escrita pelo consagrado autor britânico Neil Gaiman (autor dos livros que deram origem a “Coraline”, “Deuses americanos” e “Belas maldições”) entre os anos de 1989 e 1996. Dividida em 10 arcos, narra a história de Morpheus, o Senhor dos Sonhos, e dos míticos habitantes de seu reino.

Em 1916, Morpheus (Tom Sturridge) é aprisionado por um mago ocultista (interpretado por Charles Dance, o Lorde Tywin Lannister de “Game of thrones”) e sua seita, que tentavam capturar a Morte (Kirby Howell-Baptiste). O Sandman passa o próximo século preso em uma redoma de vidro protegida por encantamentos, o que traz terríveis consequências tanto ao Mundo dos Sonhos quanto ao mundo real.

Quando finalmente consegue se libertar, nos dias atuais, descobre que, em sua ausência, seu reino ruiu e várias de suas criações, devaneios e pesadelos escaparam para o mundo real. Morpheus começa uma missão para recuperar seus poderes e consertar seus domínios.




Sandman 

A trama pode parecer complicada para quem não está habituado com as HQs. Gaiman criou personagens e enredos complexos e carregou sua obra de centenas de suas referências preferidas. O autor, ávido consumidor de contos de fada, de mitologia e dos trabalhos de William Shakespeare, mistura textos clássicos e cultura pop ao longo das 75 edições de duração da revista.

Aos fãs das HQs, há vitória: “Sandman” é uma adaptação fiel da obra de Gaiman, mesmo com algumas mudanças. Em 10 episódios, a série conta os dois primeiros arcos das HQs “Prelúdios e noturnos” e “A casa de bonecas” e deixa a maior parte dos personagens e do desenrolar da história intactos.

Para entender do que se trata o enredo, primeiro precisamos saber quem é o protagonista: Sandman, mais conhecido como Morpheus, é baseado na lenda grega de mesmo nome e na figura folclórica de João Pestana, a entidade que espalhava sua areia mágica pelos olhos das pessoas e as induzia ao sono. Não é humano nem deus, mas a manifestação antropomórfica do Mundo dos Sonhos, ou seja, os sonhos em forma humana.





Na série, Tom Sturridge faz um excelente trabalho personificando a figura trágica e soturna que é Morpheus nas HQs. O ator consegue inclusive reproduzir a voz gutural com tons de sussurro que os balões pretos das falas do protagonista sugerem para o leitor das revistas.

Seu visual à la Robert Smith do The Cure também se mantém totalmente fiel à obra original. A exceção são os olhos: nas HQs, os olhos totalmente pretos e sem íris do Sandman lhe dão um ar fantasmagórico e sobrenatural, que foi substituído pelos olhos azuis acinzentados de Sturridge.

Tão complexa quanto Morpheus é sua família: o Senhor dos Sonhos tem seis irmãos, que também são manifestações antropomórficas de aspectos da vida. Na primeira temporada, quem ganha destaque é a irmã mais velha e mais sábia de Morpheus, a Morte, interpretada por Kirby Howell-Baptiste.





A personagem e sua relação com seu irmão caçula são o foco de um dos episódios mais bonitos que a Netflix já produziu. Sem querer dar spoilers, o roteiro é um amálgama das edições nº 8 (“O som de suas asas”) e nº 13 (“Homens de boa fortuna”), que tratam de maneira sutil e delicada a efemeridade da vida e a passagem para o que vem depois da morte.

Com “Sandman”, Gaiman deu asas à sua imaginação. Estamos falando de sonhos, onde literalmente tudo é possível, e Gaiman aproveitou cada aspecto dessa premissa. Ao longo dos sete anos em que escreveu as HQs, o autor criou uma miríade de personagens, cada um mais complexo que o outro.

Mundo dos sonhos

A série da Netflix traz os consagrados companheiros de Morpheus e habitantes do Mundo dos Sonhos: o corvo Matthew (Patton Oswalt), emissário do Sandman; e a bibliotecária Lucienne (Vivienne Acheampong), a versão feminina do personagem Lucien das HQs.





Entre os antagonistas, os destaques da primeira temporada vão para David Thewlis (Remus Lupin de “Harry Potter”) como John Dee, um homem que herda um rubi capaz de tornar seus sonhos realidade; Boyd Holbrook (“Narcos”) como o Coríntio, um terrível pesadelo que escapa do Mundo dos Sonhos quando Morpheus é aprisionado; e Gwendoline Christie (Lady Brienne de Tarth de “Game of thrones”) como Lúcifer, o Senhor do Inferno.

“Sandman” é um divisor de águas: junto com “Watchmen”, de Alan Moore, “O cavaleiro das trevas”, de Frank Miller, e “Maus”, de Art Spiegelman, é considerada um dos trabalhos mais importantes da história das HQs, responsável por revitalizar e amadurecer o gênero.

Toda essa complexidade e criatividade tornaram a obra original extremamente difícil de ser adaptada. Desde meados dos anos 90, a Warner Bros. (que detém os direitos da DC Comics para cinema e televisão) vem tentando levar “Sandman” para as telas, o que aumenta ainda mais a expectativa dos fãs.





Apesar do envolvimento direto de Gaiman na produção, a série carece da sutileza e da poética do texto original. Explorar as HQs é realmente como se adentrar no Mundo dos Sonhos. O seriado, produzido para um público amplo e convencional, é literal e sem muitos mistérios.

Mais do que algumas mudanças no enredo, talvez o que decepcione os fãs seja a falta da personalidade e da singularidade que Gaiman conseguiu dar a uma de suas obras-primas. A série não fica à altura do texto original. Ainda assim, é uma ótima viagem.

“SANDMAN”

(EUA, 2022). Série em 10 episódios, disponível na Netflix. Com Tom Sturridge, Kirby Howell-Baptiste, David Thewlis, Boyd Holbrook e Gwendoline Christie.

*Estagiário sob supervisão da editora Silvana Arantes