Jornal Estado de Minas

GRANDE JÔ

Brasil se despede de Jô Soares, ícone da comunicação, da arte e do humor


José Eugênio Soares, ou Zezinho, como era chamado em família, passou a primeira infância sem dizer uma palavra. Os pais já haviam se conformado com o fato de que a criança era muda. Até que, um dia, ele disse a primeira palavra, quando já era capaz de formar frases completas e corretas. E não parou mais.





Jô Soares tinha muito a dizer e sabia como fazê-lo em vários idiomas - adulto, tornou-se poliglota. Mas foi em bom português que ele fez gerações de brasileiros rirem com seu humor refinado, repetirem os bordões da sua galeria de personagens e ficarem acordadas até tarde para vê-lo conduzir na TV entrevistas em que, frequentemente, ele era uma atração mais interessante do que seus convidados. 

A morte de Jô, ontem,em São Paulo,  aos 84 anos, em decorrência de uma pneumonia, entristeceu o Brasil, que perdeu um de seus mais versáteis artistas. O SBT e a Globo, as duas emissoras que marcaram sua carreira, lamentaram a morte e ressaltaram a importância de Jô em sua história.

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Operário do humor




Todo mundo amava o Jô

O consultor e professor de televisão Fernando Morgado, autor dos livros “Silvio Santos – A trajetória do mito” e “Comunicadores S.A”, afirmou em entrevista ao site Metrópoles que o sucesso de Jô teve uma contribuição importante de Silvio Santos. O dono do SBT o contratou para a emissora em 1987, com a oferta de um programa diário de entrevistas, nos moldes em que ele sempre sonhara.

Principal entrevistador

“Jô Soares se tornou o principal entrevistador do Brasil graças ao Silvio Santos. A Globo, onde Jô trabalhava na época, não acreditava que o humorista fosse capaz de assumir um talk show de sucesso. E foi o Silvio quem abriu as portas para lançar o ‘Jô Soares Onze e Meia’, cujo formato é claramente inspirado nos late shows dos Estados Unidos”, lembra o biógrafo de Silvio.

Ele observa, ainda, que “Jô Soares Onze e Meia” não apenas deu audiência e faturamento para o SBT, como trouxe prestígio para a emissora, que ainda era encarada com certo preconceito pelo mercado. “O programa, por exemplo, se transformou no grande palco de debates e entrevistas na TV durante o processo de impeachment do Collor. Além disso, quebrou paradigmas por entrevistar figuras de todas as vertentes e falar de todas as emissoras, algo que a Globo, por exemplo, não permitia naquele tempo.”





Morgado também comenta a volta de Jô Soares para a Globo, em 2000. “Na minha opinião, a primeira entrevista, feita com Roberto Marinho no jardim da mansão no Cosme Velho, foi uma demonstração de força que Jô deu para aqueles que, no passado, negaram a ele a chance de ter um talk show na emissora carioca”, analisa o especialista.


Transação milionária

Em 1987, a transação milionária da TV Globo para o SBT fez com que Jô se tornasse o artista mais bem pago da televisão brasileira à época. De acordo com a revista “Veja”, naquele ano Jô receberia cerca de 2 milhões de cruzados – o triplo do que recebia na Globo.

Mas os motivos para Jô aceitar a mudança não eram financeiros. De acordo com o que se noticiou à época, o apresentador trocou o canal líder de audiência pelo SBT para realizar o sonho antigo de apresentar um talk show noturno ao estilo norte-americano.





Sua chegada ao SBT foi anunciada com ares de grande evento. Os boatos da troca do apresentador começaram no início de outubro daquele ano, com pessoas ligadas à imprensa do SBT dando a ida dele para a emissora como certa. A Globo chegou a negar a informação, que no entanto era verdadeira.


Reviravolta na televisão

No dia 26 de outubro de 1987, Silvio Santos fazia história ao interromper o telejornal “Noticentro” para confirmar a negociação. “Quero anunciar uma reviravolta na televisão brasileira”, declarou, antes de anunciar a chegada de Jô ao canal. Além do “Jô Onze e Meia”, ele estreou também na emissora o humorístico “Veja o Gordo”.

Ao longo desta década que passou no SBT, Jô apresentou 2.309 edições do programa e realizou 6.927 entrevistas. Ayrton Senna, Cazuza, Raul Seixas, Roberto Carlos, Pelé e Hebe Camargo foram alguns dos nomes que passaram pelo sofá do “Jô Soares Onze e Meia”.





Nas redes sociais, diversas postagens recordaram ondem a entrevista em que Jô caiu na gargalhada com Hebe Camargo, Nair Bello e Lolita Rodrigues: “Eu já perdi as contas de quantas vezes vi”, comentou um usuário do Twitter. Na conversa, os quatro brincam e não fogem de assuntos como sexo, envelhecimento e suas trajetórias profissionais.


Homenagem à amiga

A entrevista foi feita em abril de 2000, na primeira semana do retorno de Jô Soares à Rede Globo. Em 2012, quando Hebe morreu, Jô exibiu novamente a conversa – foi a primeira reprise da história do programa. “É a melhor homenagem que eu podia prestar a esse grande símbolo da televisão brasileira”, disse Jô em sua homenagem à amiga. “Espero que vocês se divirtam tanto quanto a gente se divertiu naquela época”, acrescentou.

Mesmo voltando para a Globo no início dos anos 2000, Jô Soares sempre demonstrou ter muito carinho e gratidão pelos tempos que passou no SBT. Em 2017, o apresentador esteve presente no Troféu Imprensa e recebeu cinco prêmios, emocionando-se assim que subiu ao palco e agradecendo a Silvio Santos.




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“Estou emocionado e lembro quando assinei o contrato. Disse que ia fazer um programa semanal, mas você disse que tinha que ser diário, senão não colava. Você é responsável por grande parte da minha vida profissional. Você tem uma grande intuição de fera. Além disso, é um grande amigo real. Às vezes, o tempo afasta as pessoas, mas não afasta os amigos reais”, declarou Jô.


Seduzir o mundo

O comunicado emitido pela Rede Globo destaca que Jô era vaidoso e chegou a dizer que já nasceu querendo seduzir o mundo. “E assim o fez, em mais de 60 anos de carreira, com momentos históricos na TV brasileira, mais de 200 personagens e 14 mil entrevistas”, diz o texto.

A estreia na TV Globo se deu em 1970, com “Faça humor, não faça guerra”, após 11 anos na antiga Record TV, onde estreou na frente das câmeras, em 1956. Três anos depois, atuou como ator e redator ao lado de Max Nunes e Haroldo Barbosa em “Planeta dos homens”. Ganhou destaque com “Viva o Gordo” (1981), época em que criou o bordão “um beijo do Gordo!”. O título veio da peça “Viva o gordo e abaixo o regime!”, sucesso do teatro no qual o humorista fazia críticas veladas à ditadura.





Entre os tipos marcantes que viveu nesta época estão o Reizinho, personagem sempre às voltas com os problemas do reino, uma sátira à situação política do país; o Capitão Gay, super-herói homossexual que usava um uniforme cor-de-rosa e andava sempre acompanhado de seu ajudante Carlos Sueli (Eliezer Motta); e o Zé da Galera, que ligava para o técnico da seleção brasileira de futebol e pedia “Bota ponta, Telê!”.


Escrita afiada

Como jornalista, escreveu para as revistas “Manchete” e “Veja” e para os jornais “O Globo” e “Folha de S.Paulo”. Em 1983, lançou seu primeiro livro, “O astronauta sem regime”. Com o romance policial “O Xangô de Baker Street” (1995), entrou para a lista dos mais vendidos. O livro, que virou filme em 2001, dirigido por Miguel Faria Jr., já foi traduzido para uma dezena de línguas. 

Também é autor de “O homem que matou Getúlio Vargas” (1998), “Assassinatos na Academia de Letras” (2005) e “As esganadas” (2011). Em 2016, foi eleito para a Academia Paulista de Letras. Seu último lançamento foi “O livro de Jô – Uma autobiografia desautorizada”, que veio à luz em dois volumes, o primeiro em 2017 e o segundo em 2018.






Jô por ele mesmo

Com verve afiada, Jô compartilha sua trajetória de astro midiático num livro escrito para fazer rir, chorar e, sobretudo, não esquecer, conforme a obra foi anunciada à época de seu lançamento. O primeiro volume resgata fatos, lugares e pessoas marcantes da juventude de Jô e reconstitui seus primeiros passos no mundo dos espetáculos, nas décadas de 1950 e 1960.

 Entre a infância dourada no Copacabana Palace e a dura conquista do estrelato, o leitor acompanha o autor do nascimento até os 30 anos. Os antecedentes familiares, a meninice privilegiada nos palácios da elite carioca, a mudança para um internato na Suíça, os marcos da formação cultural do futuro showman na adolescência. A obra foca, ainda, a paixão pelo jazz, a estreia modesta em pontas no cinema e na televisão, o primeiro casamento e, finalmente, a conquista do sucesso numa São Paulo fervilhante.