Jornal Estado de Minas

LIVRO

Canções de Caetano inspiram contos da coletânea "Vivo muito vivo"


Cada um pôde escolher a letra que quisesse. O resultado é diverso, abrange desde clássicos do cancioneiro de Caetano Veloso (“Tigresa”, “London, London”, “Terra” e “Nosso estranho amor”) até músicas menos populares (“Motriz”, lançada por Maria Bethânia nos anos 1980, e “Quando o galo cantou”, canção sobre o sexo da fase mais recente, com a BandaCê).



Quinze canções e 15 escritores. É esta a ideia de “Vivo muito vivo” (José Olympio), antologia organizada pelo jornalista e escritor Mateus Baldi. Com lançamento previsto para o final deste mês, a obra reúne autores de expressão na produção contemporânea. Cada um escolheu uma canção de Caetano e, a partir dela, escreveu um conto.

Edimilson de Almeida Pereira, vencedor dos prêmios Oceanos e São Paulo de Literatura, inspirado por “Trem das cores”, acompanha a fuga de um refugiado. Finalista do Jabuti e São Paulo de Literatura, Giovana Madalosso reimagina a história de “Tigresa”, como mostra trecho inédito publicado a seguir.
Outros nomes presentes na obra são Arthur Dapieve, um dos grandes cronistas da atualidade (e grande conhecedor da música brasileira) e as escritoras Juliana Leite, Cidinha da Silva e Nara Vidal. 

“Os autores foram selecionados pensando nas múltiplas direções para onde sua obra aponta. Nomes que eu admiro, que sei que fazem trabalhos diferentes em forma e conteúdo, e que, na escolha das canções, pudessem refletir para o leitor, para o ouvinte, um Caetano que também desse conta de como eles, os autores, o veem”, afirma Baldi.



O organizador também participa da antologia. Escreveu sob a inspiração de “Neolithic man”, canção do período do exílio londrino. Está no repertório do álbum “Transa” (1972), sobre o qual Baldi trabalha em seu mestrado. Outra do mesmo álbum é “It’s a long way”, escolhida por Carlos Eduardo Pereira.


“VIVO MUITO VIVO”
• Organização de Mateus Baldi
• José Olympio (160 págs.)
• Lançamento no próximo dia 29/8
• Em pré-venda por R$ 54,90 

TRECHO 

“Casa das Palmas”

Conto de Giovana Madalosso criado a partir da canção “Tigresa” (1977) 

“Eu não saberia por onde ela andava se não tivesse ouvido, numa mesa de bar, alguém falar dela. Seu nome era inconfundível. Em quarenta anos nunca conheci outra que se chamasse da mesma maneira. As cinco letras me fizeram descer o copo antes de chegar à boca. Quem a mencionava era uma figurante que tinha dividido com ela algumas cenas numa novela de segunda categoria. Contava que, mesmo quando as falas eram curtas, ela não conseguia decorar. Pensaram até em matar a personagem, mas precisavam dela para sustentar a trama final. Disse com um desprezo que me incomodou e, talvez por isso, nem cogitei pedir o contato – nem acho que a figurante teria.





Decorei a nome do drama: “Coração ardente”. No dia seguinte liguei para uma amiga que trabalhava no canal. Não demorou para que eu conseguisse o e-mail e o telefone. Olhando para as letras e números anotados em caneta azul, perguntei-me o que faria com aquilo. Só passamos uma noite e um dia juntos, se ela não lembrava nem das falas, como lembraria de mim? Ainda assim e por um motivo que eu sequer entendia, queria vê-la. Mandei uma mensagem. O número já não era mais dela. Mandei um e-mail, nunca tive resposta. 

Tentei esquecer o assunto mas passei a sonhar com suas íris cor de mel. Em um dos sonhos, seus dentes cravavam minha pele como uma maçã. Não soube se o vermelho dos lábios era batom ou sangue e acordei assustada. Nesse dia pensei que precisaria achá-la. Ou não achá-la de vez, o que não deixa de ser uma forma de encontro. Acionei minha amiga novamente. Para justificar a insistência, tive que explicar por que a procurava. Ao ouvir, ela riu de um jeito estranho, depois disse que eu andava muito sozinha, que procurasse uma namorada ou uma terapeuta. Um dia depois, me mandou o endereço.”