Jornal Estado de Minas

CINEMA

Ratton desiste de filme, devolve R$ 549 mil ao estado e critica a Secult


A Quimera Filmes, empresa do cineasta Helvécio Ratton e da produtora Simone Matos, devolveu aos cofres públicos R$ 549 mil. O valor é referente ao projeto “Não abuse”, aprovado pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura. A decisão foi tomada pelos próprios proponentes. O depósito para o Fundo Estadual de Cultura foi realizado em 18 de maio.





Signatários da carta enviada à Secretaria de Estado de Cultura e Turismo para justificar a devolução, Ratton e Simone elencaram uma série de dificuldades impostas pela própria Secult para realização do projeto: “falta de pessoal especializado no entendimento do setor audiovisual”; “distorções e incompreensão de conceitos básicos presentes no projeto”; “demora excessiva para dar respostas, muitas vezes a questões simples”; e “falta de interesse da Secult pelo projeto”.

Assédio sexual infantil

“Não abuse” é um projeto de longa-metragem produzido pela Quimera e dirigido por Ratton. A ficção se baseia em fatos sobre o assédio sexual infantil. A história é adaptação do livro autobiográfico “No abuses (de este libro)”, da chilena Natalia Silva Perelman.

“Abusada pelo padrasto dos 8 aos 11 anos, ela deu a volta por cima de forma bacana. Processou o padrasto e, mais tarde, contou tudo em uma novela gráfica”, conta Ratton.

O projeto do filme mistura live action com animação. “Não queríamos traçar o tema do abuso em live action. Como Natalia cria uma personagem imaginária, a super-heroína Natichuleta, haveria uma parte em animação”, explica Simone Matos. As sequências de abuso seriam em animação, “para retratar o abuso de forma mais leve”, completa Ratton.




Com os direitos do livro de adaptação para cinema adquiridos pela Quimera, o projeto foi desenvolvido em 2017. Teve a verba de R$ 475 mil aprovada pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura – o dinheiro foi recebido até o final de 2018.

“A partir de 2019, estávamos aptos para fazer o projeto. É óbvio que ninguém faz um longa somente com recursos da Secult, então conseguimos também a Lei do Audiovisual e uma parceria com a Globo Filmes. Era um projeto que vinha se desenhando com muita força”, diz Simone.

Posteriormente, houve uma série de reveses, como o desmantelamento da Agência Nacional do Cinema (Ancine) e a pandemia. “Em 2020, a Lei do Audiovisual não foi postergada, o Fundo Setorial e a Ancine foram paralisados, então precisávamos de diálogo e interlocução com a Secult para entender melhor que caminho seguir”, explica a produtora.




Curta de animação foi proposto

Para que o projeto não fosse interrompido, decidiu-se readequá-lo – com a verba da Lei Estadual seria realizada a parte em animação. Caso o longa não fosse realizado por causa das dificuldades de acesso a recursos federais, a animação poderia se tornar curta-metragem.

“Tentamos viabilizar, mas não há na Secult pessoas especializadas no entendimento do setor audiovisual”, afirma Simone Matos. Nas trocas de e-mails, ela diz, os retornos eram “completas distorções e incompreensão do conceito básico do projeto”.


O custo administrativo de um projeto não pode ultrapassar 15% do valor total. “Dentro da história de ficção, há um advogado que faz parte da animação”, conta Simone. Pois numa das trocas de e-mails, segundo a produtora, a Secult dizia que o custo de administração superava os 15% permitidos por lei, pois havia dois advogados listados. Um era o advogado da própria Quimera; o outro, o personagem da animação.





Em 15 de setembro de 2021, três meses depois de a Quimera solicitar a readequação do projeto, chegou a seguinte resposta da Secult: a mudança não havia sido aprovada porque a documentação solicitada nas diligências deveria ser enviada “em arquivo único digitalizado”. Uma semana mais tarde, Simone e Ratton enviaram e-mail à pasta informando que devolveriam o dinheiro.

“No momento em que profissionais de cultura enfrentam enormes dificuldades para sobreviver e produzir, a morosidade, o descaso e a falta de consideração nos levam a desistir do projeto ‘Não abuse’. É a primeira vez na história de mais de 30 anos da produtora Quimera Filmes, responsável por inúmeras produções marcantes para o estado de Minas Gerais, que desistimos de um projeto com recursos em conta”, escreveu a dupla.

O valor devolvido, R$ 549 mil, é superior aos R$ 475 mil recebidos em 2018 por causa do rendimento dos recursos nesse período.

Por meio de sua assessoria de imprensa, a Secult afirma que “como não houve solicitação de readequação e/ou prorrogação de prazo de execução devidamente aprovado em tempo hábil, conforme previsto na legislação, bem como alteração do objeto do projeto, não houve autorização para dar prosseguimento, uma vez que a proposta não seria executada conforme aprovação do projeto original, mudando, inclusive, a categoria de aprovação prevista em lei.”




Desgaste emocional

“Perdemos a paciência”, diz Ratton. “Apesar de estar vivendo uma situação difícil, percebemos que nosso desgaste emocional vinha sendo muito maior. Acreditamos que um filme como este, dirigido ao público adolescente, tem a maior importância. Mas não foi (assim) para a Secult, que se importa com questões burocráticas menores, com desconfiança e desprezo. A política de cultura do estado de Minas Gerais é uma política bolsonarista, não tenho a menor dúvida”, critica o cineasta.
 
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Mais conhecido diretor de Minas Gerais, Ratton tem nove filmes no currículo. Ainda este ano, planeja lançar o mais recente, “O lodo”, também realizado com recursos da Lei Estadual.

“Prestamos contas de vários filmes, todos com recursos estaduais ('Amor & Cia', 'Uma onda no ar', 'Batismo de sangue', 'O mineiro e o queijo'). Mas era outro nível de secretaria”, ele diz.

 
Simone Matos informa que a Quimera segue com a intenção de filmar “Não abuse”.

“Estamos esperando um momento em que a política ficar mais favorável para a cultura brasileira. No atual momento, está muito difícil alçar grandes voos. Desde que o governo Bolsonaro entrou e o (partido) Novo em Minas, apoiando Bolsonaro, a gente (produtores culturais) só se defende, não produzimos mais. A postura de inquisição é permanente”, afirma a administradora da Quimera Filmes.