Jornal Estado de Minas

ENTREVISTA

"O Poder Executivo é um predador", diz Sebastião Salgado sobre a Amazônia


Sebastião Salgado criou duas exposições com o material fotográfico produzido na Amazônia nos últimos nove anos. Uma delas leva o título de “Blessures” (“Feridas”, em tradução do francês) e foi doada ao Instituto Krajcberg. São imagens da destruição que assola o maior bioma brasileiro, e sua exibição, por enquanto, está restrita à Europa. 





A outra, “Amazônia”, desembarcou no Brasil em fevereiro passado e foi montada no Sesc Pompeia, em São Paulo. Em julho, chega ao Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, e depois vai para Belém, antes de seguir para Los Angeles. Desta vez, Salgado e a mulher, Lélia, optaram por mostrar o lado bonito e exuberante da mata. 

"Essa é uma opção que nós fizemos", explica Salgado. "Claro que fotografei fogos na Amazônia, desmatamento. Mas resolvemos apresentar a Amazônia viva, que não foi destruída e precisa ser preservada."

A exposição tem um total de 194 imagens apresentadas em montagem com pouca luz e backlight, o que valoriza os contrastes e dá um ar sagrado à vegetação e aos indígenas retratados. É como se Lélia e Sebastião construíssem um ambiente de adoração e contemplação para o tema. 





Das quase 200 etnias remanescentes na região amazônica, Sebastião Salgado registrou 12. Durante esses anos percorrendo a região, viu de perto o impacto do desmatamento e da invasão de terras indígenas. Segundo estudos do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a destruição das terras indígenas na região aumentou 150% nos últimos anos.

Expor a ameaça que paira sobre povos e biomas do planeta é um compromisso antigo de Salgado. Começou com projetos como “Trabalhadores” e “Êxodos” e ficou claro em “Gênesis”, no qual o fotógrafo saiu em busca de regiões intocadas e povos tradicionais. 

"Tive oportunidade imensa, quando fui fazer ‘Gênesis’, de conhecer uma grande parte do lado prístino do nosso planeta e isso me levou à Amazônia", conta. "Trabalhei com várias tribos na Amazônia brasileira, mas vendo o que estava acontecendo percebi que havia um avanço imenso na destruição da floresta, principalmente vindo da periferia para o centro."





Em janeiro de 2013, quando apresentou pela primeira vez o resultado de “Gênesis”, Salgado já alimentava a semente de “Amazônia”. A intimidade com as questões relacionadas ao meio ambiente já havia rendido frutos, como o Instituto Terra, criado em 1998 para preservar a mata atlântica, inicialmente na região da Serra de Aimorés, onde o fotógrafo mineiro recuperou milhares de hectares na fazenda herdada dos pais. 

Hoje, as ações do instituto se espalham por todo o Vale do Rio Doce, atingindo municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo. Em conversa por vídeo, de Paris, onde mora há mais de quatro décadas, Salgado falou sobre Amazônia, sobre o futuro da mata e seus povos e sobre a política ambiental no Brasil. Confira a seguir. 

Segundo o Ipam, o desmatamento na Amazônia cresceu quase 57% nos últimos anos. Você teme que a floresta que fotografou já não seja a mesma?
O bioma amazônico, principalmente no governo atual, sofre total ameaça. A primeira coisa que este governo fez foi tirar os filtros de proteção. O Ibama era um grande filtro de proteção, que verificava, dava multas. Foi eliminado para permitir a destruição. O segundo filtro foi a Funai, que sempre foi dirigida por cientistas, sempre foi organizada e funcionou na mão de sertanistas, de sociólogos, de antropólogos. A Funai hoje é dirigida por um delegado de polícia e serve ao agronegócio mais do que às comunidades. A Funai passou a ser o inimigo das comunidades. Isso permitiu a violação extrema do bioma e das comunidades indígenas. Minha grande esperança é que teremos eleição em quatro meses e que o próximo presidente não seja mais esse predador que está aí, seja alguém que respeite as grandes instituições brasileiras. A Funai é uma das maiores instituições de todas as Américas. Comunidades indígenas dos Estados Unidos e do Canadá foram inteiramente destruídas. O Brasil as mantém. E a floresta amazônica era altamente protegida pelo Ibama, pelo Instituto Chico Mendes.





Você chegou a acompanhar o impacto dessa destruição junto às populações indígenas?
São ameaças terríveis que estão acontecendo. O Brasil tem a maior concentração de índios isolados do mundo. Uma das maiores concentrações está no vale do Javari, e eles sofrem ameaças diretas dos garimpeiros, dos madeireiros e de pescadores, que facilitam enormemente a penetração dos territórios indígenas. O território ianomâmi está sendo violado por mais de 20 mil garimpeiros. Esses territórios são protegidos por lei, o governo brasileiro devia ser o primeiro agente da Constituição defendendo esse território. O governo é composto por três poderes: o Executivo, que é um predador; o Legislativo, que não toma posição; e o Judiciário, o único poder que mantém referência. É com o Judiciário que estamos contando. As comunidades poderiam ter sido quase eliminadas agora com a COVID-19. Graças ao Judiciário, conseguimos que fossem as primeiras a ser vacinadas. A gente tem tendência a imaginar que o governo é só Executivo, mas temos três poderes e um deles atua, que é o Judiciário.

Mostrar a beleza, e não a destruição da Amazônia, tem capacidade de mobilizar mais as pessoas?
São mais de 180 línguas diferentes, mais de 185 culturas diferentes, com origens diferentes. A opção que fizemos foi essa, de apresentar a Amazônia viva no sentido de que as pessoas compreendam o que é e que precisamos preservar. É a maior concentração de riquezas do mundo. Eu sei porque o custo para recuperar um hectare é enorme. E quanto custa a destruição de um hectare da floresta amazônica? É o preço que vamos ter que colocar para refazer. Custa uma fortuna. Uma fazenda jamais vai gerar riqueza suficiente para pagar a destruição que fez. Se tivéssemos um projeto de desenvolvimento sustentável, para tirar um projeto turístico, com distribuição de co- operativas e comércio justo, íamos trazer um fluxo maior de dinheiro do que entra hoje. Com as plantas medicinais, poderíamos revolucionar a indústria farmacêutica. Mas isso é uma decisão de governo, uma decisão de levar a Amazônia para um projeto sustentável.

Alguns cientistas dizem que a próxima pandemia pode vir da Amazônia. O desmatamento aumenta a probabilidade de contato com novos micro-organismos que causam doenças infectocontagiosas. Há uma relação entre a Amazônia e a pandemia que estamos vivendo?
Claro que sim. Quando você olha a COVID-19, é causada por um vírus que saiu da natureza, assim como o ebola. Então, se você pensa em um espaço como a Amazônia, o que contém de vírus, o que contém de enfermidades estocadas que nem conhecemos e que vão proporcionar surpresas terríveis com a destruição... Se continuarmos a grande escalada de destruição, seguramente vamos ter surpresas terríveis com vírus saindo da Amazônia. Imagina se tivermos três ou quatro vírus como o que causa a COVID-19?

Houve momentos de muita tristeza durante as expedições? Quais foram?
Os momentos de tristeza vieram toda vez que tive acesso aéreo e via a destruição da floresta, quando via milhares de toras de madeira descendo o rio, extraídas ilegalmente. Me dava uma tristeza imensa ver esse incentivo à destruição da maior riqueza brasileira. Esse governo atual tem que ser responsabilizado por esse crime ambiental que está cometendo.



Sebastião Salgado na abertura da exposição "Amazônia", em São Paulo, com fotografias de indígenas atrás de si. Ele fotografou indivíduos de 12 etnias na região (foto: NELSON ALMEIDA / AFP)

Como foi a aproximação e a relação com os indígenas durante a execução do projeto?
Ir para comunidades indígenas precisa de muito tempo. Primeiro, o acesso é difícil, precisa obter autorização. Obtive autorização da Funai. Só pude ir depois da autorização e eles sabiam que eu ia, estavam me esperando. Para fazer um trabalho desses, precisa de muito tempo, precisa viver com as comunidades. Os indígenas são muito democratas. Para começar a trabalhar, tinha reunião com a comunidade inteira, durante dias, para me conhecerem. As comunidades indígenas jamais foram tão ameaçadas como agora. E nunca foram tão organizadas. Eles estão altamente organizados e sabiam quem era eu e que meu trabalho serviria no sentido de divulgar para proteger. Na exposição, eu faço, sim, apresentação estética através das fotos; Lélia traz uma quantidade de informação, mas quem traz o ponto político e social são as entrevistas de líderes indígenas que estão dentro da exposição fazendo discurso na língua deles.

Houve negociação entre o que você queria mostrar e o que eles queriam falar?
Todas as comunidades com as quais trabalhei, sem exceção, já tinham tido contato. Eles conheciam o mundo do qual eu vinha, por que eu vinha. Só me aceitaram porque o que eu ia fazer era coerente com o que eles queriam apresentar. Houve total amalgamento com o que estava esperando e o que eu poderia oferecer. Foi muito bom, interessante, sincero. Eles são profundamente sinceros e sabem que estão profundamente ameaçados, que se a gente não conseguir que o bioma seja protegido, eles não terão mais o meio ambiente garantido e eles precisam de todo o sistema amazônico para continuar a existir como comunidade. A gente, às vezes, tem uma ideia de que os indígenas são ingênuos, inocentes. Eles são iguaizinhos a você e a mim. Dentro da floresta, são o mesmo animal que eu, com a mesma acuidade e preocupação, existe uma verdadeira troca.

Você teve a oportunidade de conviver com populações que vivem em áreas isoladas, apesar do contato com o branco. O que acha do discurso da integração?
A opção tem que ser da comunidade indígena e não de uma proposta política interessada no espaço que o indígena ocupa hoje. As comunidades indígenas entraram na América há 20 mil anos, quando chegaram na Amazônia e tiveram que buscar seus territórios. Eles são agricultores e buscaram as terras mais aptas à agricultura. O que acontece no governo atual? Eles estão loucos atrás das terras indígenas porque são as melhores para a agricultura, mas elas são protegidas pela lei.