Jornal Estado de Minas

PARCERIA FASHION

Ronaldo Fraga põe vereda e sertão no figurino da última turnê de Milton


Adolescente nos anos 1980, o estilista Ronaldo Fraga se incomodava ao ver os artistas do Rock Brasil explorando a moda da época e os mineiros sem preocupação nenhuma com o figurino. “Nunca falei isso com ninguém, pois pegava mal. Como vou falar mal dos meus ídolos?”, comenta ele hoje.





Em meados de 2021, quando recebeu o contato de Augusto, filho e empresário de Milton Nascimento, chamando-o para fazer o figurino da última turnê do cantor e compositor, Ronaldo se lembrou disso. Mas recordou também o impacto que sentiu ao ver Milton, 25 anos atrás, na celebrada temporada de “Tambores de Minas”, dirigido por Gabriel Villela.

“Com aquele figurino, Milton realmente estava no lugar de nobreza que merece. Obviamente, figurinos e cenários não constroem um artista, e nomes como Milton Nascimento, em silêncio, já fazem música. Mas tais elementos são mais um canal de comunicação do artista”, acrescenta.

Fardão em azul profundo homenageia as noites do sertão de Guimarães Rosa (foto: Milton Nascimento/Instagram)

ÚLTIMA SESSÃO 

Para criar o figurino de “A última sessão de música”, nova e última turnê de Milton, com 23 apresentações – a estreia será em 11 de junho, no Rio de Janeiro, e o encerramento em 13 de novembro no Mineirão, em Belo Horizonte –, as inspirações foram Arthur Bispo do Rosário e Guimarães Rosa.





A partir da obra do artista sergipano e do escritor mineiro, Ronaldo inclui temas que se relacionam com a própria trajetória do compositor e cantor, que chega aos 80 anos em 26 de outubro.

“Milton tem que ser colocado como uma divindade, como ele realmente é, um orixá da música brasileira”, afirma Ronaldo. Em 1995, seis anos após sua morte, Bispo ganhou o reconhecimento internacional quando suas criações foram apresentadas na Bienal de Veneza. Ali foi exibido o “Manto da apresentação”. Considerada sua obra máxima, representava a passagem de Deus na Terra. Bispo deveria vesti-la no dia do Juízo Final.

Ronaldo falou da intenção de vestir Milton com um manto e lhe mandou, em Juiz de Fora, um livro de Bispo. A aprovação foi imediata e o estilista viajou para tirar as medidas. “Disse que tinha pensado numa capa vermelha. Ele disse que adorava vermelho. Falei de um fardão interno, representando os mistérios das noites do sertão, em azul profundo. Ele adorou, assim como os desenhos.”

Croqui do manto vermelho que fez Milton chorar (foto: Ronaldo Fraga/reprodução )
O manto, de linho puro, forrado em seda dourada, foi bordado a mão por Stella Guimarães, bordadeira do Vale do Jequitinhonha que vive em Itabira. “O vermelho representa o nascer na vereda, enquanto o azul do fardão evoca o anoitecer no sertão”, explica o estilista. Ele desenhou elementos que são alicerces da trajetória de Milton, como as montanhas, o violão que se transforma em tecla de piano, além de palavras de diferentes letras de canções.




 
Letras de canções foram bordadas à mão (foto: Ronaldo Fraga/reprodução )
 

CHORO 

Milton e Ronaldo se reencontraram em dezembro, no Rio de Janeiro. “Ele é uma figura que fala com os olhos, de pouquíssimas palavras, o que nos reforça a máxima de que a pretensão da música é ser silêncio.” Antes disso, o estilista havia sido surpreendido com a foto de Milton chorando vestindo a capa.

Detalhe do fardão bordado de Milton (foto: Ronaldo Fraga/reprodução)
“Se nasci e segui a profissão até hoje foi para isso, por todo o significado que o projeto traz. Não é só a luz sobre a carreira de um músico grandioso, de um poeta da música brasileira, mas também pelo momento por que a nossa cultura passa, tão demonizada nestes tempos”, finaliza Ronaldo Fraga.