Jornal Estado de Minas

CINEMA

Longa 'Pureza' conta a história da mãe-coragem que combateu a escravidão


Bacabal é um município do Maranhão distante 240km da capital, São Luís. Foi nesta cidade, hoje com 100 mil habitantes, que a maranhense Pureza Lopes Loiola chegou com a família, marido e três filhos, para tentar uma vida melhor. Algum tempo depois, não havia mais casamento, mas a mulher e a prole continuavam a ganhar a vida em uma olaria.





Em 1993, o caçula, Antônio Abel Lopes Loiola, resolveu que era hora de ir além. Deixou Bacabal para tentar a sorte no garimpo no Pará. Sem notícias dele, Pureza decidiu tentar encontrar o filho. Com a roupa do corpo e quase nenhum dinheiro, partiu para o estado vizinho. Foram mais de três anos para que finalmente tivesse o filho a seu lado – mas a jornada desta mulher impactou a vida de centenas de jovens trabalhadores que, como o próprio Abel, se tornaram escravos.

Com estreia nesta quinta-feira (19/5) nos cinemas, “Pureza”, de Renato Barbieri, apresenta uma história impressionante – pela força de sua personagem central e também por mostrar que o Brasil contemporâneo ainda não se desvinculou da herança do Brasil Colônia. 

Hoje uma senhora de quase 80 anos, Pureza percorreu sozinha garimpos, carvoarias, madeireiras e plantações do interior do Maranhão e do Pará. A partir das informações que tomou com as pessoas com quem conviveu, esta mulher que só se alfabetizou na idade adulta para ler a Bíblia encaminhou denúncias ao governo federal.






DENÚNCIAS

Somente em 1995 o Brasil admitiu a existência de trabalho escravo em seu território. Devido às denúncias de Pureza, o Ministério Público do Trabalho, o Executivo e o Judiciário criaram o Grupo Especial Móvel de Fiscalização para atuar na Região Norte. Em 1997, ela recebeu o prêmio anual da instituição britânica Anti-Slavery International, considerada a primeira ONG do mundo, criada em 1839 por abolicionistas do Reino Unido.

Tal trajetória é dramatizada no cinema com Dira Paes no papel-título. “Conhecia a história de Pureza através da história dos Direitos Humanos, a quem sou ligada desde os 13 anos. Mas não tinha noção da preciosidade dela, e tive isto quando a conheci pessoalmente”, comenta a atriz paraense.



Experiente documentarista, com carreira iniciada nos anos 1980 junto à produtora paulista Olhar Eletrônico, onde trabalhou ao lado de Fernando Meirelles, Paulo Morelli e Marcelo Tas, Barbieri estava em busca de uma grande história para estrear na ficção. Em 2007, conheceu a trajetória de Pureza por meio do fotógrafo Hugo Santarém. 





“Queria uma história universal que pudesse se comunicar com todo mundo. Foi uma longa jornada de 15 anos”, comenta ele, que filmou em 2018 e finalizou o longa no ano seguinte. O adiamento de 2020 para 2022 em decorrência da pandemia é hoje celebrado pelo diretor.

“Estou achando o momento perfeito. Estamos em um ano eleitoral e estamos refletindo sobre quem somos e quem queremos ser. ‘Pureza’ vem trazer essa contribuição. Queremos continuar sendo escravagistas ou queremos construir uma nação livre? Isto não cabe a governos. É a sociedade brasileira que tem que assumir para si a ideia de nação que quer ser.”

Antes de lançar o longa de ficção, Barbieri fez um documental, “Servidão” (2019), também sobre o mesmo tema. “‘Pureza’ coloca o espectador na cena do crime enquanto ‘Servidão’ mostra a perspectiva histórica de uma mentalidade escravagista secular. O Brasil nunca deixou de ser escravagista, já que a primeira abolição foi precária e ainda vivemos em um apartheid social.”





As filmagens foram realizadas em alguns dos lugares por onde Pureza passou duas décadas atrás. “Fomos para o Sul do Pará, um lugar com um manancial de recursos natural e também zona de conflito de terras. Além disso, tivemos a participação de um grande número de trabalhadores ex-escravos no filme. Uma coisa é inventar um espaço, outra é estar no lugar onde tudo aconteceu. Isto tudo deu corpo para o filme”, comenta Dira.


COZINHEIRA

Na ficção, Pureza consegue trabalho como cozinheira de uma fazenda que conta com vários trabalhadores escravizados. É neste lugar que ela conhece as trajetórias de jovens como seu próprio filho desaparecido. Ao mesmo tempo em que tenta ajudá-los como pode, tem que fugir de seu principal algoz, o capataz Narciso (Flávio Bauraqui).

Na fazenda, para onde são levados com a promessa de muito trabalho e também remuneração, os trabalhadores não demoram a descobrir que não têm direito a nada e que devem muito. Alimentação, roupa, local para dormir e até o transporte para as fazendas, tudo é cobrado – e não há nenhum salário no fim de cada mês.





Perdem inclusive a identidade – os documentos são tomados pelo administrador da fazenda, assim que cada um dá entrada no local – e o nome. Cada trabalhador/escravo é chamado pela região de onde veio. Como Maranhão é um jovem que lembra muito Abel, Pureza rapidamente se afeiçoa a ele. 
 
O ator Guto Galvão é Maranhão, um dos jovens escravizados que Pureza tenta ajudar (foto: Gaya Filmes/Divulgação)
 

Ator paraense radicado no Rio de Janeiro, Guto Galvão interpreta o jovem que terá uma trajetória trágica. Ele estava de férias em Belém, quando soube do casting para o filme. Mandou seu material, fez o teste e não passou. “Vida que segue. Quatro meses depois, fui chamado para uma substituição, que era um papel relativamente pequeno”, conta Guto, que está fazendo sua estreia em longas. 

Assim que começou a trabalhar, a dinâmica mudou. “No processo de desenvolvimento do filme, o diretor foi gostando das propostas que eu fazia e fui ganhando espaço. Até que o Renato me propôs uma cena impactante e, como ele é também o roteirista, criou uma história para o personagem. O Maranhão acabou representando vários personagens”, acrescenta Guto. 





O elenco atuou em contato com trabalhadores que foram escravizados naquela região. “O Renato fez muita questão de trazer tudo para perto de nós. Através do Maranhão ficamos sabendo como é realizado o trabalho escravo contemporâneo, como um jovem trabalhador que busca uma vida digna é atraído para o sistema escravocrata sob falsas promessas”, diz Guto.

OUTROS TRABALHOS

Uma das estrelas do remake de “Pantanal”, onde interpreta Filomena, Dira Paes também é a narradora da série “Relatos do front – A outra face do cartão postal”, que estreia em 27 deste mês, às 22h30, no Canal Brasil. A série de quatro episódios dá sequência ao filme “Relatos do Front” (2018), de Renato Martins (o longa será exibido neste sábado, 21/5, às 14h50, no mesmo canal). Filme e série tratam da segurança pública no Rio de Janeiro, do passado até os dias de hoje. 

“PUREZA”

(Brasil, 2022, 102min., de Renato Barbieri, com Dira Paes e Flávio Bauraqui) – Estreia na Sala 1 do UNA Cine Belas Artes, às 14h e 18h30; no BH 7, às 14h45 e 22h20; no Cidade 1 às 15h05 (qui, sex, sab e qua), 19h05 (sábado, seg, ter e quarta) e 13h35 e 17h45 (dom); no Cidade 3, às 15h20 (dom); no Cidade 8, às 14h30, 16h35, 18h40, 20h50 (qui e sex), 14h20 e 16h25 (seg e ter); Contagem 5, às 14h20 (seg e ter); Contagem 7, às 15h05 e 19h15 (qui e qua); Contagem 8, às 14h e 21h10; Del Rey 4, às 15h20 e 19h20; Del Rey 7, às 13h30; Ponteio 4, às 15h e 19h20