Jornal Estado de Minas

ARTES CÊNICAS

Ouro Preto será palco para a estreia da ópera "Aleijadinho"

Enquanto o maestro Silvio Viegas regia a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais dentro da sala de ensaios do Palácio das Artes, os cantores solistas convidados ficavam sentados à porta do recinto, olhando para o lado de fora, de onde o maestro André Brant os conduzia. 



A inusitada dinâmica no último ensaio da ópera “Aleijadinho” em Belo Horizonte, realizado na segunda-feira passada (25/4), se justifica pelo fato de que a estreia da produção ocorrerá no adro da igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, na próxima sexta-feira (29/4).

Silvio Viegas, que também responde pela direção musical desta que é a 90ª produção operística da Fundação Clóvis Salgado, explica que, como não há um fosso para a orquestra no local onde a ópera vai estrear e tampouco seria razoável deixá-la entre o público e a cena, a opção foi por posicioná-la lateralmente. 

“A questão é que, se eu me coloco na lateral da cena, o contato visual dos solistas comigo diminui. Quando percebemos isso, pedi ao maestro André que fizéssemos o ensaio com ele dando as entradas para os solistas, até para que pudessem se sentir seguros caso, na estreia em Ouro Preto, eles não consigam em absoluto me ver”, explica.





Composta por Ernani Aguiar a partir do libreto escrito por André Cardoso, “Aleijadinho” se insere no programa de estímulo à criação e difusão nacional de óperas da Fundação Clóvis Salgado. Trata-se de uma investida vultosa, com a première ao ar livre, na cidade onde nasceu e viveu o artista que é internacionalmente reconhecido como referência do barroco mineiro e cujas obras encontram-se espalhadas pelo estado.

O cantor Johnny França assumiu o papel de Aleijadinho. Libreto se baseia em fatos históricos sobre o escultor (foto: Paulo Lacerda/Divulgação)

ELENCO

 A montagem, que tem direção cênica de Julianna Santos, conta com as participações da Orquestra Sinfônica e do Coral Lírico de Minas Gerais, da Cia. de Dança Palácio das Artes e dos solistas convidados Johnny França (Aleijadinho), Mar Oliveira (Manuel Francisco), Guilherme Moreira (Tomás Antônio Gonzaga), Pedro Vianna (Alvarenga Peixoto), Lício Bruno (Lobo de Mesquita), Luanda Siqueira (Joana) e Mauro Chantal (Vicente Ferreira).

Convencido das possibilidades dramáticas sobre a vida do escultor, André Cardoso rascunhou os primeiros esboços em forma de roteiro em julho de 2009, quando apresentou a ideia ao maestro e compositor Ernani Aguiar, que, imediatamente, se entusiasmou pelo projeto. Com a proximidade dos 280 anos de nascimento do artista, ocorrido entre 1737 e 1738, a ideia foi retomada e o libreto, concluído em 2016, foi repassado ao compositor.



Cardoso diz que o estímulo inicial para começar a trabalhar nesse espetáculo foi a admiração que tanto ele quanto Aguiar sempre nutriram pela obra de Aleijadinho. “Também passa pela relação que a gente tem com Minas, o Ernani até mais do que eu; ele já ganhou o título de cidadão ouro-pretano. No meu caso, convivo com o repertório colonial mineiro não só como intérprete, mas também como pesquisador. Lobo de Mesquita e Sousa Lobo foram objetos de estudo no meu mestrado”, afirma.

Ele conta que empreendeu uma intensa pesquisa histórica para escrever o libreto. “Eu já tinha uma bibliografia grande sobre Aleijadinho, então comecei dali e fui ampliando, para que a ópera, mesmo sendo uma obra de ficção, tivesse conexão com os fatos históricos. Usei desde a biografia escrita em 1858 pelo Bretas (o advogado e professor Rodrigo José Ferreira Bretas), que chegou a conhecer a nora do Aleijadinho, até uma bibliografia mais recente, com dados novos”, diz.


PERSONAGENS 

Todos os personagens que aparecem na ópera são reais e viveram em Vila Rica – como se chamava a tricentenária cidade – no mesmo período de Aleijadinho, segundo Cardoso. Ele destaca que as situações mostradas em cena são ficcionais, mas seguem a cronologia da vida de Aleijadinho. 





“A ópera não tem por objetivo ser um documentário sobre a vida de Aleijadinho. É um drama, então são necessários os elementos dramáticos, o enredo com início, meio e fim, o personagem principal, o antagonista”, diz.

Ele observa que, logo na abertura da montagem, por exemplo, é encenado um encontro entre Aleijadinho e os inconfidentes, em uma taberna de Vila Rica. “É o maior ato da ópera, com a participação da Cia. de Dança do Palácio das Artes. Assim como esse encontro, a gente imagina outros, com Lobo de Mesquita, por exemplo.”

O autor do libreto comenta que também se valeu de uma tese da historiadora Isolde Venturelli, da década de 1980. A despeito de não haver comprovação de seu teor, há uma grande carga dramática na tese segundo a qual Aleijadinho teria esculpido os profetas de Congonhas como representações dos inconfidentes. 





“A ópera termina dessa forma, com os profetas entrando em cena, como se fossem os inconfidentes, voltando para visitar Aleijadinho e levá-lo embora na hora de sua morte”, adianta Cardoso.


Ernani Aguiar conta que, a partir do momento em que o libreto lhe foi entregue, teve início um longo processo de idas e vindas e trocas de ideias entre ele e o autor. “Todo mundo me pergunta sobre meu processo composicional. Eu acredito em Deus. Para mim, toda inspiração vem do Divino Espírito Santo; ela chega aqui e encontra a técnica que o compositor estudou para dominar e ser capaz de materializá-la. No caso de um libreto, o próprio texto já te transmite uma emoção, às vezes a melodia vem direto com a palavra. A partir daí, é um trabalho de maturação”, diz.

Ele ressalta que, na composição, buscou dialogar com a música da época, com as intervenções que realizou em uma obra de Lobo de Mesquita, ao criar uma linha de canto para Aleijadinho, por exemplo. O maestro resgatou também o estilo das serenatas mineiras, como no dueto de Joana e Manuel Francisco, no primeiro ato, e no prelúdio e no interlúdio do terceiro ato.

Instado a apontar o que considera a característica mais marcante de “Aleijadinho”, o maestro Silvio Viegas hesita, sem disfarçar sua empolgação. “São tantas qualidades, tantas nuances atrativas, tantos pontos positivos que é difícil dizer o que me chama mais a atenção. Eu poderia falar da qualidade da música e do texto, que são geniais”, diz, antes de afirmar que o poder de comunicação da obra é seu maior trunfo.




PAIXÃO 

“Quando a gente coloca uma peça para estreia mundial, cria-se naturalmente algum tipo de resistência, as pessoas olham com desconfiança, afinal, é algo desconhecido, mas o que aconteceu com essa ópera é que todo mundo se apaixonou por ela, a direção, os solistas, a orquestra, o coral”, afirma. 

Segundo o maestro, a montagem “tem uma capacidade de comunicação que é impressionante. Nos ensaios, vejo os músicos e os cantores emocionados. É uma obra que fala diretamente com quem executa e com quem assiste, sem linguagem estranha, sem arroubos ou pretensões”.

Viegas destaca, ainda, o fato de ser uma obra inédita, feita por artistas contemporâneos, com os quais pode trocar impressões relativas à sua execução e entender quais são suas intenções e desejos. 





“Discutir e realizar alterações é algo maravilhoso e que somente pode ser feito tendo seus criadores vivos e abertos a sugestões e observações. É construir uma parte da história dessa ópera e fazer parte de um momento cultural histórico para nosso estado e nosso país”, comenta.

“Quando a gente faz uma ópera conhecida, como ‘Traviata’, eu já ouvi milhares de vezes, a orquestra conhece, então, por mais que eu tenha meu conceito, sou influenciado por inúmeros registros que estão dentro de mim. O mesmo acontece com a orquestra”, diz o maestro. 

Viegas acrescenta que “o bonito, no caso de ‘Aleijadinho’, é o fato de ser uma construção que parte do zero, feita a várias mãos, com cada um colocando uma pedrinha para fazer esse castelo enorme que é a ópera. Isso traz a sensação de você estar fazendo história. Daqui a 50 anos, ninguém vai se lembrar de mais uma montagem da ‘Traviata’, mas vão falar da estreia de ‘Aleijadinho’. Estamos escrevendo uma página da nossa cultura”. 





O maestro destaca ainda a pertinência de a produção abordar Aleijadinho, um símbolo planetário da mineiridade. “Não estamos falando de qualquer um, não são Romeu e Julieta, não é um personagem de Goethe, não estamos tratando de uma fábula romena ou russa, mas de um artista brasileiro que deixou um legado fundamental. Estamos falando das nossas raízes e das nossas origens na arte. Não dá para falar em arte no Brasil sem falar de Aleijadinho. Para chegar em Chico Buarque ou Portinari, precisou existir Aleijadinho”, aponta.

PATRONO DAS ARTES 

Para Ernani Aguar, o mestre do barroco também se eleva no plano das artes e é um nome fundamental para a construção da própria identidade de Minas Gerais e do Brasil. “É o patrono das artes brasileiras, não há outra coisa a dizer. Rui Mourão, historiador que dirigiu o Museu da Inconfidência durante uns 30 anos, fala muito bem disso. Os livros que ele escreveu mostram Aleijadinho quase como um espírito protetor das artes. Sou louco pela obra de Aleijadinho desde a infância”, afirma. 

O maestro e compositor não esconde sua expectativa com relação à estreia em Ouro Preto. “Vou deixar acontecer na hora. Já estou com 71 anos e todo mineiro é muito emotivo, então sei que vou chegar lá e me lembrar dos meus professores, me lembrar de papai, e aí vou ter que me segurar bastante. Se eu tomar uma cachacinha antes, talvez eu consiga ter mais controle”, graceja. Após a estreia em Ouro Preto, a montagem cumpre temporada no Palácio das Artes, com récitas nos próximos dias 14, 16, 18 e 20 de maio.

“ALEIJADINHO”

Composição de Ernani Aguiar e libreto de André Cardoso. Com Orquestra Sinfônica e Coral Lírico de Minas Gerais, Cia. de Dança do Palácio das Artes e solistas convidados, sob regência do maestro Silvio Viegas. Estreia nesta sexta-feira (29/4), às 20h, no adro da Igreja de São Francisco de Assis (Largo da Coimbra, Centro de Ouro Preto). Acesso gratuito.  Mais informações para o público: (31) 3236-7401.