Leonard Cohen (1934-2016) não foi um grande pai. Também colecionou relacionamentos mal sucedidos. De dinheiro tampouco soube cuidar. “Religião, professores, mulheres, drogas, a estrada, fama, dinheiro... nada me dá um barato e um alívio tão grande do sofrimento quanto enegrecer as páginas, escrever”, disse certa vez o poeta, cantor e compositor canadense.
A morte aos 82 anos não o pegou desprevenido. Em 21 de outubro de 2016, dezessete dias antes de morrer dormindo, depois de cair em sua casa em Los Angeles, ele lançou o álbum “You want it darker”. Disse, quando do lançamento, que estava “preparado para morrer”.
Mas não foi esse álbum e nem outro, lançado postumamente – “Thanks for the dance” (2019) –, que o mantiveram vivo, a despeito da saúde frágil. Foi, sim, o livro “A chama” (2018), que ganha agora edição bilíngue inglês/português (a tradução é de Caetano Galindo) pela Companhia das Letras – o lançamento será nesta terça-feira (19/4).
“Escrever este livro era o motivo de ele estar se mantendo vivo, era seu único objetivo premente no final”, escreveu seu filho, Adam, autor do prefácio da obra que reúne poemas, letras, desenhos e notas. Ainda que não tenha finalizado o volume, Cohen deixou todas as instruções para que ele fosse publicado a seu gosto.
O livro é aberto com 63 poemas inéditos selecionados pelo autor. “É sabido que Leonard trabalhava seus poemas por anos, às vezes décadas... Esses 63 ele considerava obras finalizadas”, apontou Alexandra Pleshoyano, professora da Universidade de Sherbroke, no Canadá, na abertura do volume.
KANYE WEST
Romântico até o fim, ainda que sempre dialogando com a melancolia e a desilusão, Cohen deixa seu recado em poemas como “Seguindo em frente” e “Não faz mal”. A autodepreciação aparece em “O que eu faço” e “Eu ouço os carros”, a ironia fina em “Kanye West não é Picasso”.
A morte está sempre à espreita: “Eu rezo por coragem/ Que consiga/ A morte ver chegando/ Como amiga” é o último poema da parte inicial do livro.
A segunda parte reúne as letras de seus quatro últimos álbuns: “Blue alert” (2006), de Anjani Thomas, que ele produziu; “Old ideas” (2012), “Popular problems” (2014) e o supracitado “You want it darker”. Quem acompanhava a trajetória de Cohen sabe que todas as suas canções nasceram como poemas – então, aqui elas estão em sua essência.
A terceira parte é a maior e mais complexa. Durante seis décadas, Cohen escreveu diariamente em cadernos. Notas, apontamentos, arremedos de poemas, tudo ficou sob a guarda do professor de literatura Robert Faggen, um dos amigos mais próximos do compositor. Foi ele quem supervisionou a transcrição de mais de três mil páginas desses escritos e selecionou o material.
'RETRATO FRACASSADO'
Colorindo os escritos, há desenhos ao longo do livro. Cohen deixou 370 autorretratos, 70 deles escolhidos pela equipe que editou a obra. Textos acompanham os desenhos – no primeiro autorretrato, por exemplo, ele escreveu “retrato fracassado”; em outro, “o jeito é agir sem jeito”.
O humor surge em outra imagem que Cohen desenhou de si próprio: “Isso não é piada, por isso que é engraçado. Essa é a própria essência do humor canadense.”
O livro termina com o discurso que Cohen proferiu em 21 de outubro de 2011, quando recebeu o Prêmio Príncipe das Astúrias das Letras, na Espanha. A inclusão do texto, por sugestão dele, é esclarecedora, amarrando as duas partes, o poeta e o cancionista.
Ao público que compareceu à cerimônia em Oviedo, Cohen, que tinha como maior influência o poeta e dramaturgo espanhol Federico García Lorca (tanto que sua filha se chama Lorca), contou como aprendeu a tocar violão.
O SUICIDA DE MONTREAL
Em Montreal, nos anos 1960, ele conheceu um jovem espanhol que tocava violão em um parque ao lado da casa de sua mãe. Os dois começaram a conversar em francês ruim e combinaram algumas aulas – até então, Cohen não mais que arranhava o instrumento. Houve alguns encontros, e ele melhorou a olhos vistos.
Certo dia, o professor não mais apareceu. Havia se matado, o que impactou deveras Cohen, que nada sabia sobre ele. Mas foram as breves aulas, e os seis acordes simples que aprendeu com o jovem morto, que se tornaram a base para todas as suas canções.
TRÊS PERGUNTAS PARA
CAETANO GALINDO/TRADUTOR
1 - Você escreveu que as letras de Leonard Cohen têm relação mais próxima com os livros do que as de Bob Dylan, a quem também já traduziu. Que aspectos os aproximam e os distanciam?
O Dylan é muito mais expansivo, em todos os sentidos: na duração das músicas, na extensão das letras, na abrangência dos temas. O Cohen é muito mais contido, muito mais ‘música de câmara’. Sua música é mais no formato pop tradicional. Os poemas têm estruturas mais enxutas, os versos são mais curtos. Ele é um pouco menos poeta do mundo como é o Dylan. O Dylan é ‘filho’ do Walt Whitman, quer ser multidão, mundo. O Cohen é muito mais modesto em suas pretensões, muito mais zen, mais cronista do imediato, das letras de amor, de casal. Ele tem muito presente a coisa do divino, da religião. Em todos os sentidos, formas e temas, os dois são criadores muito diferentes, musical e poeticamente.
2 - Há canções da fase inicial da carreira de Leonard Cohen que, regravadas décadas mais tarde, ganharam novas nuances diante da gravidade do registro vocal dele. Sua produção poética também ganhou outras nuances frente à maturidade, já que o livro reúne poemas e apontamentos de diferentes épocas?
Acho que sim. Mas como é um livro de portas da morte, é difícil a gente não projetar essa expectativa na leitura dos textos, assim como era difícil para ele e para o filho já não lidar com esses termos. Ele sabia que estava lidando com seu último livro. Então a gente percebe – e é difícil determinar o que é a nossa lente, já meio borrada – a mudança, uma direção para outros temas. Isso é natural do envelhecimento, de um artista que continuou produzindo durante tanto tempo. Em certo sentido, é uma situação muito privilegiada o leitor ter acesso a um livro que foi concebido como um testamento, como um depoimento final.
3 - Que diferenças se pode apontar entre os poemas e as letras de Leonard Cohen?
Há diferenças, mas elas não são tão sensíveis assim. O Cohen era um poeta, ao contrário do Dylan, alguém que vem da música e leva para a música esse referencial da poesia. O Cohen era alguém das letras que, a partir de um momento, decide cantar seus poemas. Para mim, é muito claro que as canções são colocadas nos poemas, já são versões mais ou menos relacionadas com este universo. Inclusive, aparecem no livro poemas que são versões de letras de músicas. As alterações são muito sutis. Às vezes, para o formato de canção, há certas alterações de repetição, de forma, que são necessárias. Acho que isso é parte do encanto que as pessoas sentem pela obra dele. É poesia cantada mesmo.
O POETA
O comandante Cohen está ferido
de velhice ou de paixão
a torre de seu tanque Sherman
toda suja de sangue
Ele que tem cem amantes
vestido de monge
pede um copo d’água
para um enxame de moscas
Sou a canção & não cantor
leve este corpo
leve este espírito
Não fronteira
mas o centro
Poupem a ira, anjos
que logo vêm os dias
em que a terra será
espelho
o sol será teia
a lua será uma aranha
que se aproxima
seja Dylan
seja Jesus
seja sr. Rockefeller
quero chegar às pessoas
a que o mestre não chegou.
“A CHAMA”
De Leonard Cohen
Companhia das Letras
608 páginas
R$ 99,90 (livro)
R$ 44,90 (e-book)