Jornal Estado de Minas

RESENHA

Livro de Bruna Kalil Othero questiona e ajuda a compreender a Semana de 22

Uma resenha é feita de muitas coisas, uma delas a diferença entre resenhador e autor do livro resenhado. Um velho resenhador, mais de três vezes a idade do autor do livro resenhado, e ambos (livro e resenha) procurando saber o que deve ligá-los. Neste caso talvez a conjunção entre duas opiniões diferentes, mas que se unem numa dúvida comum – a crítica e a desconfiança do assunto tratado, seu respeito por ele mas também o desconforto ao perceber que sua filtragem não está completa.




Quando um amigo, diretor de publicação, pediu-me colaboração e sugeriu que eu poderia escrever algo sobre a Semana de Arte Moderna, cujo centenário se comemora neste ano, pensei um pouco e reescrevi um velho artigo tratando do esquecimento (“cancelamento”, numa linguagem mais crua e conforme com o vocabulário “woke” de hoje) de alguns autores da época, também modernos, que foram “cancelados” ou “esquecidos” por não comungarem do mesmo prato futurista e estarem interessados em outras gálicas e germânicas iguarias, parte igual da Modernidade. E também por razões de ativismo político.

JUSTIÇA HISTÓRICA

Afinal de contas – e minha idade o confirma – convivi com um dos reconhecidos líderes do movimento, e tive fortuitos encontros com alguns outros. De certa maneira, meu artigo era uma tentativa de justiça histórica.

“Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas” (Letramento, 2019), de Bruna Kalil Othero, livro a ser resenhado aqui agora, tenta a mesma coisa: justiça pela falta de “modernização” em outros aspectos do mundo em que vivemos e que às vezes importam mais que a literatura.




 
 
 
A partir do título, Oswald de Andrade, com todas suas possíveis qualidades, metaforicamente acha que suas cuecas devam ser lavadas por uma mulher. A condição inferiorizada de quem lava as roupas do outro (principalmente as íntimas) foi um tropo levantado no Portugal de 1915 pelo polimórfico Almada Negreiros (o único amigo a quem Fernando Pessoa tratava por “tu”). E se o fez perfunctoriamente foi apenas por ter munição mais violenta em seu repertório de insultos contra o popular Júlio Dantas, escritor “elegante”, grande empavonada mediocridade, mas muito mimado pelos críticos de então.
 
Bruna vai muito mais longe; para ela bastou dar ao tema a superioridade de ser o título de seu livro, definindo o fato de que se queremos ser modernos, deve ser em tópicos como este que se encontra um dos cernes da Modernidade, a luta pela igualdade dos sexos.
 
A contundência do título representa apenas a necessidade de dizer as coisas como as coisas são. Reduzidos a sua condição humana, o homem/Oswald coloca a mulher/Tarsila na posição de lavadeira de suas roupas íntimas, quando, na realidade, e creio que o futuro o comprova, como artista/criador ela é superior a ele.




 
Para Bruna, faltou modernidade à Semana por esconder este problema; para o resenhador, esta falta encontra-se na negação prática de que a Modernidade compreende muitos e vários caminhos estéticos escamoteados pelos rapazes de 1922.
 
 
 
Estas razões podem ser distintas, mas o alvo o mesmo: a comemoração do centenário da Semana não pode se restringir a um elogio não de todo necessário, mas a uma séria constatação que, culturalmente, aquilo que ela pregava não correspondia ao que era o Brasil real, mas sim ao Brasil que o “novo” capitalismo de São Paulo estava criando.
 
A Semana de Arte Moderna e o incipiente Modernismo no Brasil é produto da riqueza da cafeicultura, como indica a participação do nome de Paulo Prado, um dos seus patrocinadores. A economia do café, “doce herança” da escravatura, entretanto, se vê seu zênite na década de 1920, caminha para seu nadir a partir de 1930. Esta data, a da publicação de “O quinze”, de Rachel de Queiroz, marca literariamente o aparecimento de novos autores e novos interesses.




RACHEL DE QUEIROZ

O vanguardismo futurista vai dar lugar ao romance da terra, o eixo passa de São Paulo para o Nordeste e, metaforicamente, abre um Brasil pobre e afirma a possibilidade de uma passagem do patriarcado masculino europeizante para uma juventude – Rachel tinha 20 anos então – que vinha para discordar e se afirmava como uma nova escolha, esta sim, verdadeiramente nacional.

Hoje, o que a Semana produziu é como um manuscrito antigo e ultrapassado sobre o qual outros textos foram e devem ser escritos. O livro de Bruna é um palimpsesto das obras da Semana, no qual restam algumas manchas antigas, a serem notadas em quase todas as páginas do livro, resquício do que os modernistas fizeram e que a autora deste último texto do canônico palimpsesto está descartando.
 
Tarsila não era lavadeira e não obedeceu ao pedido. As manchas (a referência a estes nomes e a textos dos modernistas de 1922, aludidos no texto de Bruna) é o que sobra da Semana. Por isto, o livro está marcado pela cueca suja de Oswald porque este ainda é seu estado atual, esta é a Semana que temos de considerar, “a roupa suja do cânone.”




 
Façamos a leitura de alguns pontos que este livro nos apresenta.

A começar da capa, que lembra “Operários” de Tarsila do Amaral, antes presos nas cinzentas chaminés industriais e na verticalidade de uma arquitetura puramente utilitária, agora libertos de sua condição proletária para formar uma representação multifacetada de tipos de democrática cultura atual.
 
E a outra parte do que nos diz o título, a bandeira nacional como uma moderna cueca verde e amarela e azul, tatalando depois de lavada, é também atualizada. Na época de Oswald de Andrade as cuecas eram as chamadas “samba-canção”, com seus botões e extensões de perna.

'Abaporu': obra-prima de Tarsila do Amaral (foto: Reprodução)
E logo, o melhor exemplo deste palimpseto: o aproveitamento do “Abaporu”, o canibal de Tarsila, explícito exemplo de como escrever num papel ou numa tela onde algo já foi escrito antes. Pois é isto o que Bruna faz. O “Abaporu” é modernizado, no retrato da autora na segunda orelha do livro, mantendo a mesma posição em que Tarsila o pôs, agora em espelhado enfrontamento ao original, como também o mandacaru de três braços e o Sol.




 
O tronco central do cacto tem sua amplitude aumentada, enfatizando uma sugestão fálica com três elementos. O gesto, reminiscência de Rodin, é transformado no de uma leitora que observa um livro invisível em sua mão. Peças de roupa e adereços estão jogados no chão ou pendurados no cacto, símbolos de vestes que não são mais que algemas arrebentadas. O antropófago da Semana é aqui uma intelectual que afirma seu direito de ser livre e empoderada, e cujo sentido leva à afirmação de multiformes sexualidades. A mulher não como lavadeira, mas como uma igual em todos os termos.

Uma última consideração. A linguagem usada por Bruna é a mesma do dia a dia brasileiro. A autora esquiva-se de qualquer preocupação de transcrição fonética, coisa que os modernistas, salvo Oswald de Andrade, não tentaram, ao que sei.
 
A armadilha fonética – como grafar a linguagem comum (o medieval de Gonçalves Dias, o regional de Coelho Neto e Catulo da Paixão Cearense, o “tô” e o “né” dos jornalistas atuais) – tem sido um problema. Afonso Arinos e Guimarães Rosa resolveram o problema com o apoio de uma cunha: aquele que escreve e que nós lemos é um interventor que nos passa o que lhe foi narrado.




ALÇAPÃO

Oswald, grande admirador de Catulo, fica preso na armadilha em “Marco Zero”, e repete a solução de Coelho Neto. Bruna não cai no alçapão e sua linguagem obedece aos cânones (perdoe-me!) do código aceite do português escrito.
 
Última palavra: o livro de Bruna foi selecionado para o Prêmio de Incentivo à Publicação Literária, 100 Anos da Semana de Arte Moderna de 1922-2018, promovido pelo Ministério da Cultura. Este livro de Bruna dá-nos esperança de que outros prêmios virão.

* Heitor Martins é jornalista
 

(foto: Letramento/reprodução)
"OSWALD PEDE A TARSILA QUE LAVE SUAS CUECAS”

De Bruna Kalil Othero
Editora Letramento
70 páginas
R$ 35