Jornal Estado de Minas

ARTES CÊNICAS

Tributo à potência da palavra, 'Encerramento do amor' faz temporada em BH


É de um questionamento instigante – quem amamos quando amamos? – que parte o espetáculo “Encerramento do amor”, mas não necessariamente em busca de uma resposta. A montagem brasiliense realizada pela Cia. Setor de Áreas Isoladas, com direção de Diego Bresani, faz curtíssima temporada no Galpão Cine Horto, com entrada franca, expondo justamente as camadas de complexidade envolvidas em um relacionamento que chega ao fim.





Com duas apresentações neste domingo (10/4), às 16h e às 19h30, e outra na segunda-feira (11/4), às 19h30, a peça é composta por dois grandes monólogos, ditos em sequência por um casal que está se separando, interpretado pelos atores Ada Luana e João Campos a partir do texto original do francês Pascal Ramber.

Ada Luana interpreta a mulher que reage, em sua fala, a argumentos machistas do companheiro que se vai (foto: Henri dos Anjos/divulgação )

CLICHÊS 

Diego Bresani conta que a fala do homem reproduz clichês da representação masculina no senso comum, com seus vícios machistas. A fala da mulher, por sua vez, está no lugar de reação.

“Eles não se resolvem, na verdade. É um exercício de fala, de narrar experiências, com cada um expondo sua visão do que é ou do que foi a relação que tiveram. São diferentes formas de se ver a mesma realidade. Duas pessoas que podem interpretar e levar essa realidade em sua memória de diferentes maneiras. O texto não se propõe a resolver nada, só mostrar como somos todos muito problemáticos”, diz o diretor.





“Encerramento do amor” chegou a Diego Bresani por meio da atriz Ada Luana, depois de um amigo em comum, Marcus Vinícius Borja, que mora na França, traduzir o texto. Assim que tomou contato com a peça, Bresani planejou a montagem em parceria com Luana.


O que mais chamou a atenção do diretor foi a densidade de “Encerramento do amor”. “É uma peça de uma hora e quarenta minutos de muito texto, então é um convite à escuta, o que acho muito interessante. Ainda mais nos dias de hoje, em que tudo é imagem e tem de durar no máximo 30 segundos”, aponta. Cada ator, em seu monólogo, interpreta texto de aproximadamente 25 páginas.

“Não é uma peça fácil. O desafio é justamente você ficar quase uma hora escutando uma pessoa falar e depois quase uma hora escutando outra”, aponta.

O texto original de Pascal Lambert – bem como a tradução de Marcus Vinícius – não tem pontuação, o que, segundo Bresani, dá a diretor e atores a liberdade para criar a partir de recursos de voz e de oratória.





“Não modificamos nada, nenhuma palavra. Trabalhamos com as entonações, as pausas e as repetições. Algumas palavras são repetidas até que o significado delas se perca ou seja distorcido”, adianta.
Os atores João Campos e Ada Luana decoraram 25 páginas do texto escrito pelo francês Pascal Rambert

FIO DA MEADA 

A montagem se aproxima do que ele chama de performance sonora, “muito verborrágica”, que pode, intencionalmente, levar o espectador a se perder no meio de tantas palavras e só depois conseguir recuperar o fio da meada e voltar ao contexto. “Tem momentos em que você só se liga no som da voz”, diz Bresani.

Em cena, não há propriamente embate entre os personagens, que não dialogam e nem se tocam em momento algum – o que é, no mínimo, incomum em montagem teatral com ao menos dois atores em cena. O que há, segundo o diretor, é uma pletora argumentativa que pode redundar vazia.





“Gosto muito da ideia de você deixar uma pessoa falar até esgotar tudo, as ideias, as palavras, o corpo, a voz, enfim, chegar ao limite de não ter mais o que falar porque já falou tudo. Trata-se apenas de escutar a lógica ou a falta de lógica dessa pessoa em torno de um argumento, bem como observar a construção e a destruição desse argumento. ‘Encerramento do amor’ dá esse tempo”, salienta o diretor.

O esgotamento que o texto de Rambert propõe foi um grande desafio para os atores. “Antes de mais nada, existe a dificuldade óbvia de decorar 25 páginas de texto sem pontuação”, diz, destacando que Ada Luana e João Carlos falam os respectivos textos, de ponta a ponta, sem modificar nada. “Tiveram disciplina muito impressionante”, comenta Bresani.

Enquanto um deles interpreta o monólogo, o outro está presente e atento às marcações para não se perder. Deve compreender o que está sendo dito, memorizar e seguir quando for assumir a voz. “É muita informação para os atores. Eles costumam dizer que escutar é até mais cansativo. Atravessar as palavras todas ao longo do tempo de duração da peça é um desafio. Escutar o texto e entender o que e como está sendo dito”, explica o diretor.





“Uma coisa é ler, outra é levar para a cena, trabalhar com o som, com a fonética, com a forma como a palavra é dita, eventualmente conferindo, pela repetição, outros significados para essa palavra”, sublinha.

TERCEIRO ELEMENTO 

A montagem que estreia hoje em Belo Horizonte não se furta a exacerbar a questão da pesquisa sonora, o que lhe confere traços surrealistas. “Existem, de forma programada, momentos de derivação do entendimento”, pontua o diretor. Um detalhe curioso que a ficha técnica do espetáculo revela é a presença de três atores: além de Ada Luana e João Carlos, o elenco se completa com Taís Felippe.

“Entre um monólogo e outro, existe uma espécie de interlúdio. A personagem da Taís entra contextualizando, é como se fosse um ensaio. Ela não tem nada a ver com o casal, é meio que uma estranha ali, que chega, passa dois ou três minutos e vai embora. É participação pequena, mas, de alguma forma, ela é a conexão com a realidade. Você está ouvindo um discurso muito logo e ela chega para quebrar esse fluxo”, explica o diretor.





A peça ganhou versões na Espanha, Estados Unidos, Japão e no Marrocos, entre outros países, quase sempre dirigidas pelo autor, Pascal Rambert. No Brasil, passou pelo Recife e, depois da temporada em Belo Horizonte, segue para São Paulo e Rio de Janeiro, antes de partir em turnê por outras capitais.

“ENCERRAMENTO DO AMOR”

Peça de Pascal Rambert. Direção: Diego Bresani. Com Ada Luana, João Campos e Taís Felippe. Neste domingo (10/4), às 16h e 19h30, Segunda (11/4), às 19h30, sessão com acessibilidade em libras. Galpão Cine Horto, Rua Pitangui, 3.613, Horto. Entrada franca, mediante retirada de ingresso pelo site Sympla.

Pascal Rambert, dramaturgo e cineasta, também se dedica à ópera (foto: Reprodução)

O “MULTIAUTOR”

Pascal Rambert, de 59 anos, foi diretor do Théâtre de Gennevilliers (T2G), o qual transformou em Centro Dramático Nacional de Criação Contemporânea, dedicado ao teatro, dança, ópera, artes visuais, cinema e filosofia. Ele tem textos traduzidos para diversas línguas, suas peças são convidadas para os principais festivais do mundo, em Montpellier, Avignon, Utrecht, Berlim, Hamburgo, Nova York e Tóquio. O francês encenou várias óperas na França e nos Estados Unidos e dirigiu curtas-metragens premiados em festivais em Pantin, Locarno, Miami e Paris.