Jornal Estado de Minas

MÚSICA

Ícone da MPB, Elza Soares deixa rico legado para o Brasil

Elza Soares deixa legado incomparável para a cultura brasileira. Não foi só musa, diva, brilhante intérprete, mulher à frente de seu tempo às voltas com a violência e a exclusão social. Sua força extrapolou fronteiras: nos anos 2000, recebeu o prêmio de melhor cantora do milênio, concedido pela BBC de Londres.




 
Samba, samba-canção, bossa nova, MPB, rock, rap. Elza soube construir sua carreira ao longo de seis décadas, atenta às várias vertentes da música brasileira. Seu canto rasgado lembrava o jazz, ou melhor, os negros sofridos dos campos de algodão dos Estados Unidos. Ou as lavadeiras que subiam favela com a lata d'água na cabeça. Ela foi uma dessas mulheres. Nunca se entregou.
 
 
 
Artista no peito e na raça, enfrentou o preconceito como poucos.
 
Nada foi fácil. Filha de mineiros, pai operário (Avelino Gomes) e mãe lavadeira (Rosária Maria da Conceição), teve sete filhos – perdeu três. O pai a obrigou a se casar aos 12 anos. Encaixotou sabão, lavou roupas no Rio de Janeiro.
 
Nos anos 1950, Elza iniciou a carreira artística na Rádio Tupi, ao participar do programa do mineiro Ary Barroso. Ficou em primeiro lugar no concurso comandado por ele. Quando o compositor estranhou sua aparência e lhe perguntou de onde veio, respondeu: “Do planeta fome, seu Ary”. O dinheiro serviu para pagar os remédios do filho. Conquistou Ary e o Brasil, com sua interpretação de “Lama”.




 
Nos anos 1950, foi crooner de orquestra, cantou em bailes, destacou-se no mundo do samba. Não era loura, enfrentou o racismo, foi em frente. Colocaram até gilete dentro do vestido dela.
 
Nos anos 1960, gravou “Se acaso você chegasse”, “A bossa negra” e o “O samba é Elza Soares”. O marido havia morrido há muito de tuberculose, ela cantava para sustentar a família. Chamou a atenção do Brasil, fez turnês na Argentina, EUA, Europa e México, conheceu Louis Armstrong, achou que ele imitava o seu scat.
 
Elza se apaixonou pelo craque Garrincha, viveram sua paixão sob ataque da opinião pública, pois ele era casado e pai de vários filhos. Alcoólatra, o jogador em decadência foi amparado por Elza, que se mudou para a Itália com ele. O casamento chegou ao fim em 1982, ele morreu em 1983. Garrinchinha, o filho dos dois, era muito pequeno – Elza desabou quando o garoto morreu aos 9 anos, em 1986. 
 
Nos anos 1970, começaram os problemas na carreira, agravados nos anos 1980. Participou do Projeto Pixinguinha, gravava por selos pequenos, mas pensou em deixar tudo. Caetano Veloso a pôs de novo sob os holofotes ao convidá-la para gravar o rap “Língua” em seu disco Velô, em 1984.




 
Elza não sossegou. Gravou rock com Lobão, fez parceria com Cazuza, lançou releitura arrasadora de “O guri”, de Chico Buarque. Dirigida por José Miguel Wisnick, veio outra virada na carreira. O disco “Do coccix até o pescoço”, projeto inovador e contemporâneo, lhe rendeu indicação ao Grammy. 
 
Em 2015, lançou uma obra-prima: “A mulher do fim do mundo”, com repertório inédito e colaborações com a novíssima e ousada geração da MPB contemporânea: Rômulo Froes, Celso Sim, Rodrigo Campos, Guilherme Kastrup. 

Arrancou elogios de David Byrne ao levar a turnê ao Central Park nova-iorquino.
Ganhou o Grammy de melhor álbum de MPB com esse trabalho. The New York Times o considerou o destaque do ano.
 
O diálogo com a MPB contemporânea foi aprofundado em “Deus é mulher”, disco de 2018. Em 2021, lançou “Elza Soares e João Aquino”, com canções de Lulu Santos, Gilberto Gil, Luiz Melodia, Toquinho e Jorge Ben.
 
“Nunca conheci uma mulher como ela, alguém que me inspirasse tanto, que inspirasse tantas pessoas, alguém que tivesse uma biografia que era para dar toda errada. Elza não era para ter existido, a vida jogou contra ela a vida toda.
 
Tudo era obstáculo na vida dela. Quanto mais ela ouvia não, mais ela se fortalecia, virava outra pessoa”, disse ontem o jornalista Zeca Camargo, autor da biografia do ícone da cultura brasileira que deu adeus a seu povo nesta quinta-feira.




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