Jornal Estado de Minas

EXPOSIÇÃO

CCBB-BH abre mostra com obras do Museu de Imagens do Inconsciente

Em janeiro deste ano, a equipe do Estúdio M’Baraká fez sua primeira incursão ao Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro. Havia muito que ver, mas o tempo era escasso. A primeira gaveta aberta, recorda-se bem o diretor de arte, Diogo Rezende, foi de aquarelas de Carlos Pertuis (1910-1977). 


“Eram 30 ou 40 retratos de uma mesma face, atravessados por paisagens do Rio e também lugares imaginários, algo que fala sobre sermos muitos e como nos vemos na cidade”, comenta. Na sequência, outras 10 gavetas foram abertas – mas a força das imagens da primeira não saiu da cabeça do curador.





Pertuis, Adelina Gomes, Emydio de Barros, Fernando Diniz, Lucio Noemann, todos eles foram artistas. Mas só foram reconhecidos como tal por causa do trabalho empreendido por uma mulher. A psiquiatra alagoana Nise da Silveira (1905-1999), aluna de Carl Jung e radicalmente contrária ao eletrochoque e à lobotomia, de forma pioneira utilizou a arte como terapia para pessoas com sofrimentos psíquicos. Atuando no Centro Psiquiátrico Pedro II (atual Instituto Municipal Nise da Silveira), fundou no local, em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente.

Em sete décadas de atuação, o museu, no Engenho de Dentro, Zona Norte da capital fluminense, viu seu acervo crescer velozmente: atualmente, o número de obras catalogadas gira em torno de 400 mil. Uma parte pequena, mas bastante representativa, desse material poderá ser vista a partir desta quarta (8/12) no Centro Cultural Banco do Brasil, em Belo Horizonte. 

A exposição “Nise da Silveira – A revolução pelo afeto” apresenta um diálogo entre arte e loucura por meio da trajetória da psiquiatra, da obra de seus clientes (a maneira como ela chamava os pacientes) e de outros artistas, contemporâneos ou não a ela, que também lidaram com o tema.





Ocupando quatro salas e o corredor do primeiro piso do CCBB, a mostra reúne mais de uma centena de obras. São três diferentes grupos: parte do acervo do Museu de Imagens do Inconsciente, que forma o grosso da exposição; trabalhos de artistas modernos, que se relacionaram com ela e com suas ideias (como Lygia Clark e Abraham Palatnik); e um terceiro grupo, de nomes contemporâneos, cujas obras não têm relação com a saúde mental, mas que promovem um diálogo com a mostra.

O espaço expográfico corresponde a quatro salas e o corredor do primeiro piso do CCBB, na Praça da Liberdade (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)

ALICE 

Deste último grupo, Diogo Rezende cita “Alice e o chá através do espelho” (2014), fotoperformance de Rafael Bqueer que apresenta o artista paraense de costas, vestido como a personagem de Lewis Carroll, no meio de um lixão. 

“Ali temos uma Alice distópica, desconstruída, feita por um homem negro em um cenário completamente assimétrico que retrata a realidade do Brasil e de muitos dos ‘clientes’ do hospital de Engenho de Dentro”, comenta o curador.





A mostra destaca em torno de 80 obras de pessoas que passaram pela instituição de saúde mental. O processo de seleção foi grande, pois alguns dos nomes mais conhecidos, como Adelina Gomes e Emydio de Barros, deixaram no acervo do museu 17 mil e 3,3 mil obras, respectivamente. “O que fizemos foi mais um trabalho de edição, pois já se falou muito sobre eles”, afirma Rezende. 

No entanto, ele aponta algumas descobertas. Uma delas é de Beta d’Rocha. “Foi uma artista/cliente que esteve em diferentes períodos no hospital e é um caso de reintegração social. Publicou um livro (‘A história de Beta’). Descobrimos pastas e pastas dela, que haviam sido pouco vistas”, cita Rezende.  

A exposição gira em torno de três núcleos temáticos: “Contexto, dor e afeto”, “Nise, ser mulher, ser rebelde” e “Engenho de dentro”. “Não queríamos fazer uma exposição linear e biográfica. Encontramos a trajetória de Nise ao longo de toda a exposição”, explica o curador. 

ELETROCHOQUE 

O primeiro núcleo mostra, por exemplo, Nise tendo contato com tratamentos de eletrochoque. Há uma história conhecida em que ela, bastante jovem, presencia a primeira sessão de emprego da técnica. Finda a aplicação em um paciente, o psiquiatra manda trazer outro e diz a ela: “Aperte o botão” (que daria início ao eletrochoque). Ao que a jovem médica responde: “Não aperto”. 





Nesse núcleo estão expostos desenhos de Carlos Pertuis que expõem a dor do paciente psiquiátrico. “Meu sofrimento na seção, de quem é a culpa?” (1956) é o título do desenho feito por ele em grafite e lápis de cera.

O segundo núcleo, “Ser mulher, ser rebelde”, acompanha Nise durante sua formação em medicina, sua prisão e a criação do ateliê de arte. Um dos destaques foi a recriação de sua imensa biblioteca (ela mantinha um apartamento em cima de sua residência somente para guardar os livros, que eram apoiados em estantes feitas de tijolos). A pintora carioca Margaret de Castro foi convidada pela curadoria para recriar, em quatro telas, a biblioteca.

O último núcleo, “Engenho de dentro”, foi construído a partir de uma analogia feita por um cliente de Nise, que dizia que o Engenho (referindo-se ao hospital) era o próprio inconsciente. Nessa seção, é enfatizada a relação da psiquiatra com Carl Jung, de quem foi aluna e seguidora. A exposição tem uma versão virtual (acesso pelo site nisenoccbb.com.br), que inclui um tour 360 e uma experiência sonora descritiva que recria os ambientes da mostra com dramaturgia.




Dividida em três eixos, a exposição descreve o percurso profissional de Nise da Silveira a partir de seus anos de formação como médica (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)

SAIBA MAIS
Quem foi Nise da Silveira

Nascida em Maceió, filha do professor de matemática e jornalista Faustino Magalhães da Silveira e da pianista Maria Lídia da Silveira, Nise da Silveira foi a única mulher entre os 157 formandos de 1926 da Faculdade de Medicina da Bahia. Pouco depois de se formar, casou-se com o sanitarista Mário Magalhães, com quem viveu por toda a vida. O casal, que se mudou para o Rio em 1927, não teve filhos.

Nos anos 1930, Nise se especializou em psiquiatria. Em 1936, durante a ditadura Vargas, ela era residente no Hospital Nacional de Alienados. A denúncia de uma enfermeira, que declarou que a médica possuía “literatura comunista”, levou-a para a prisão. Acusada de ser militante, ficou encarcerada durante um ano e três meses.

Libertada em 1937, viveu com o marido numa situação de semiclandestinidade e quase penúria. Só voltou ao serviço público após ser anistiada, em 1944, mas em outro hospital carioca: o Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, em Engenho de Dentro. Por sua discordância em aplicar eletrochoques nos pacientes, foi transferida para o setor de terapia ocupacional. Em 1946, fundou na instituição a Seção de Terapêutica Ocupacional, criando ateliês de arte para os pacientes.





Na década de 1950, além de fundar o Museu de Imagens do Inconsciente, Nise também se aproximou de Carl Jung. Depois de trocas intensas de correspondência, foi para Zurique, onde estudou com ele. Posteriormente, formou o Grupo de Estudos Carl Jung e publicou “Jung: Vida e obra” (1968), entre outros livros. 

Morreu no Rio de Janeiro, aos 94 anos, em 30 de outubro de 1999. Em 2016, o cineasta Roberto Berliner lançou a cinebiografia “Nise: O coração da loucura”, com Glória Pires no papel-título.
 

 

NISE DA SILVEIRA – A REVOLUÇÃO PELO AFETO
A exposição será aberta nesta quarta (8/12), às 10h, no Centro Cultural Banco do Brasil, Praça da Liberdade, 450, Funcionários. Visitação de quarta a segunda, das 10h às 22h. Entrada franca,  mediante retirada de ingresso com agendamento prévio no site Eventim. Até 28 de março

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