Jornal Estado de Minas

ARTES CÊNICAS

Artistas de BH falam da emoção de pisar de novo no palco diante do público


Após um longo período de portas fechadas, em respeito às medidas restritivas impostas pela pandemia da COVID-19, o Galpão Cine Horto reabriu para o público no fim de semana passado. Até o final deste mês, o centro cultural do Grupo Galpão abriga a Mostra Reencontro de Teatro de BH.





A mostra começou com o espetáculo "E se todas se chamassem Carmem?", da Breve Cia., apresentado na sexta (5/11). No domingo, foi a vez do grupo Teatro Negro e Atitude, com a peça "À sombra da goiabeira".

"Foi muito bonito", comenta Renata Paz, atriz da Breve Cia. "Enquanto artista, é muito gostoso poder retornar aos palcos. No último ano, eu fui privada do meu trabalho e, além disso, não pude consumir teatro da forma como estamos acostumados. Eu me senti lesada duas vezes. Amo fazer o que faço. E teatro é presença. A gente até namora o cinema, brinca com o audiovisual, mas nada é igual a estar diante do público."

Ex-aluna do Galpão, ela também destaca a importância de uma companhia como a Breve fazer parte de um evento como esse. "Somos uma companhia negra, formada por pessoas negras. A nossa presença joga luz sobre o racismo estrutural que há nos espaços culturais. Eu sei quantas pessoas negras pisam dentro e fora do palco. É importante para mim e para os artistas negros que ocupemos os espaços."





Apesar da emoção em estar de volta aos palcos depois de um longo período longe deles, Renata confessa que, ainda assim, teve medo de ter contato com o novo coronavírus e se certificou de que todos os integrantes da companhia estivessem vacinados para o retorno aos palcos.

"Ainda estamos em pandemia. Tenho muito medo da COVID, ainda mais porque é algo que a gente não vê. Não sei se o vírus está na máscara das pessoas. Mas fico muito feliz e agradecida que estou vacinada, meus colegas estão vacinados e, agora, a gente se arrisca, mas com algumas garantias. Todos nós da Breve Cia respeitamos demais o isolamento social no último ano. Voltar também é um desafio por causa disso", ela conta.

A participação na Mostra Reencontro não foi a primeira experiência da Breve Cia com público presencial desde o início da pandemia. Em outubro passado, a companhia apresentou a cena "Uma, outra", no 2º Festival de Teatro Mínimo, realizado no Teatro da Cidade. No entanto, alguns fatores tornaram mais especial a encenação, que ocorreu no último fim de semana.






OCUPAÇÃO

Primeiro porque "E se todas se chamassem Carmem?" é o primeiro trabalho da companhia, que foi formada em 2016. Segundo porque foi um evento com um público maior, apesar de ainda reduzido. E terceiro porque o espaço do Galpão Cine Horto permitiu que a peça fosse encenada da forma como foi concebida.

"Essa é uma peça de ocupação de espaço. A gente ocupou todos os espaços possíveis: a saída dos fundos, a escadaria, o cinema e por aí vai. Desde sempre, ela foi uma montagem intimista, que não pode ser feita em qualquer lugar. Quando a gente estreou, foi para somente 25 pessoas. É uma peça que aposta nos sentidos, por isso é tão importante a presença e a participação do público", Renata Paz comenta.

Encenação de "E se todas se chamassem Carmem?", da Breve Cia., abriu a mostra, na última sexta-feira (foto: Henrique Perez/Divulgação)


"E se todas se chamassem Carmem?", dirigido por Adriano Borges, conta a história de três mulheres – vividas por Renata, Anair Patrícia e Amora Tito – que falam sobre suas vidas enquanto negras em uma sociedade estruturalmente racista e branca. 





"As três têm algo em comum: uma verborragia debochada sobre a situação do país em que vivem. Foram abortadas no tapa do nascimento e criadas por vermes da lata de lixo da cozinha da parte amarela da bandeira do maior país da América Latina", diz a sinopse.

"Tratamos de dor. E é muita dor. É a dor do aqui e do agora e é uma dor que tem pelo menos 500 anos. O texto é extremamente sutil, mas tem muita porrada e muito banzo. Pegamos como inspiração as Mães de Maio, fizemos pesquisas em documentários, filmes, teatros, músicas. É uma peça que fala da solidão da mulher negra", explica Renata.

Segundo ela, a peça ganha um novo significado ao ser encenada neste momento. "Passamos muito tempo em casa e isso traz um trauma. Ao mesmo tempo em que a gente quer viver o ritual do teatro, nosso estado de ser foi modificado no último ano. Então a gente encena com o cuidado de não disparar dores no nosso público, lembrando que aquilo é uma peça, que vamos sair dali depois que tudo acabar. Ainda que a realidade fora do teatro também seja muito dura."





Para Marcus Carvalho, integrante do grupo Teatro Negro e Atitude, essa lógica também se aplica ao espetáculo "À sombra da goiabeira". Escrito antes da pandemia, o texto narra a difícil relação entre um pai e um filho que, após 13 anos sem se falar, se reencontram para tentar se reconciliar.


PERDAS

"É um espetáculo que fala exatamente sobre perdas, distâncias e falta de diálogo. Dentro do contexto do pós-pandemia, todos esses três fatores ganham um novo significado", ele afirma. "Os dois personagens só voltam a se falar porque o pai está morrendo. É uma tentativa de salvar essa relação e recuperar o perdão."

Ao recuperarem o contato, pai e filho questionam os arquétipos de masculinidade e construções machistas. "A partir daí, a gente fala sobre ancestralidade dentro da linguagem das manifestações de cultura de matriz africana. É um espetáculo que ritualiza a morte e o perdão. É um grande ritual de morte e de superação", comenta Marcus.





Essa foi a primeira vez que o Teatro Negro e Atitude encenou a peça diante de um público, desde o início da pandemia. Marcus Carvalho define o retorno como "lindo, por vários motivos".

"A gente viu o quanto o nosso grupo tem um público fiel, que esperava nosso retorno ansiosamente. É muito legal olhar para a plateia e ver que ali estão os nossos amigos. Além disso, estar em uma mostra do Grupo Galpão é extremamente importante para nós. O Grupo Galpão é de suma importância para Belo Horizonte."

A Mostra Reencontro nasceu de um edital lançado em abril de 2020, como forma de contribuir para que artistas e grupos de Belo Horizonte e região metropolitana não encerrassem suas atividades. Desde que surgiu, a ideia do concurso sempre foi promover o 'reencontro' desses grupos com o público mineiro.

"A gente recebeu o cachê por esse espetáculo na pandemia, para realizá-lo assim que possível. Ao longo de todo esse período até a realização  de fato da mostra, ficamos em diálogo com o Galpão, que sempre foi muito compreensivo. Em determinado momento, por exemplo, cogitou-se fazer uma mostra on-line, mas os grupos selecionados não concordaram. Eles foram bastante pacientes, e a gente pôde realizar esse retorno da melhor forma possível", comenta.

Ao todo, a Mostra Reencontro terá 10 espetáculos encenados presencialmente, sempre às sextas e domingos, até o próximo dia 28. A mostra também promove uma exposição de artes visuais e lançamento de livros. A programação completa ainda inclui um espetáculo virtual e um espetáculo sonoro. A programação está disponível no site do Galpão Cine Horto




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