Jornal Estado de Minas

CINEMA

Wagner Moura: 'Marighella' é 'resposta à tragédia do governo Bolsonaro'

Um filme não pode ser descolado de seu tempo. E o tempo de “Marighella” é hoje. Passaram-se oito anos desde que Wagner Moura anunciou sua estreia na direção com a história de Carlos Marighella (1911-1969). Rodaria, a partir da biografia “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo” (2012), de Mário Magalhães, os últimos anos do ex-deputado e guerrilheiro baiano, declarado o maior inimigo da ditadura militar (1964-1985).





Dificuldades de financiamento, ameaças nas filmagens, imbróglio com a Agência Nacional do Cinema (Ancine), o que acarretou o cancelamento da estreia, há dois anos (censura, é o que Wagner Moura sempre afirmou), ataques virtuais e, no último ano e meio, uma pandemia. Os percalços em si dariam quase outro filme. 

Depois de participar de festivais em todos os continentes, a partir de Berlim, no início de 2019, “Marighella” finalmente chega ao circuito comercial brasileiro. A estreia oficial será nesta quinta-feira (4/11), exatos 52 anos depois do assassinato do militante de esquerda em emboscada numa rua dos Jardins, em São Paulo. 

A partir desta segunda-feira (1º/11), pré-estreias estão programadas em todo o país, inclusive em BH. A história parte de uma cena de alta propulsão – o assalto a um trem protagonizado por Marighella (Seu Jorge) e os jovens integrantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) ao som de “Monólogo ao pé do ouvido”, de Chico Science e Nação Zumbi. A ALN foi fundada por ele logo após sua expulsão do Partido Comunista, em decorrência de seu envolvimento com a guerrilha, explica um flashback.





A partir desse momento, o longa acompanha seus movimentos com a luta armada; sua vida pessoal distante da companheira Clara (Adriana Esteves) e do filho Carlinhos (Matheus Araújo), e a perseguição empreendida pelo delegado Lúcio (Bruno Gagliasso). “Não fiz um filme sobre os que lutaram contra a ditadura nos anos 1960 e 1970 apenas, fiz um filme sobre quem está lutando agora. Isso é o que me dá mais alegria”, afirma Wagner Moura ao Estado de Minas.

 

Os problemas enfrentados pelo filme “Marighella” começaram muito antes das questões com a Ancine, certo?
Desde que anunciamos, em 2013, que iríamos adaptar o livro do Mário Magalhães. Na hora de ir atrás de dinheiro para financiar o filme, pela Lei do Audiovisual, foi incrivelmente duro. Pessoalmente, fui a várias reuniões junto com o pessoal da O2 Filmes para tentar financiamento. Foi zero por cento, não houve nada. As mensagens (recebidas das empresas) eram de que não queriam associar (as marcas) ao projeto.

“Marighella” foi rodado no final de 2017, momento em que Jair Bolsonaro era realidade, mas não uma certeza. O longa que você filmou quatro anos atrás ganha novo significado agora?
Um filme é e sempre será a conjunção entre o que pensa o realizador na hora em que estava filmando com o tempo em que a obra é apreciada. Está muito claro para a maioria da população brasileira a tragédia que é o governo Bolsonaro. No início de 2019, ainda havia certo otimismo por parte dos antipetistas que votaram nele. Hoje em dia, vejo que é um governo que depende unicamente dessa gente que sai no 7 de Setembro para pedir o fim do Supremo e a volta da ditadura. Estamos em um país em que 19 milhões de pessoas estão passando fome, com 600 mil mortos por COVID. ‘Marighella’ é um filme que luta contra um governo federal para existir.



Até hoje, aquele cara da Secretaria de Cultura (o secretário Mário Frias) e o outro da Fundação Palmares (o presidente Sérgio Camargo) ficam atacando o filme no Twitter, mobilizando sua militância para dar nota baixa no IMDB (Internet Movie Database, maior base de dados da indústria audiovisual do mundo). São ataques de gente louca, radicais, fascistas mesmo. Não estou pedindo a ninguém para gostar de ‘Marighella’. Não fiz uma hagiografia. Na época do ‘Tropa de elite 1’ (2007), a gente foi para o debate, ouvimos acusações. Isso não é problema. O que acho grave é o quanto a gente retrocedeu. Lá atrás tínhamos um filme na rua, hoje em dia é um filme com tentativa de interdição.

Fala-se muito mais dos percalços da produção do que do filme propriamente. Para você, estreante na direção de longas,isso é frustrante?
Com o ‘Tropa’ foi a mesma coisa e é natural. Tenho certa frustração, eu também queria falar um pouco de cinema, da linguagem que usei. Se vivêssemos numa situação normal, talvez fosse possível. Por outro lado, é um filme político, sobretudo no momento pelo qual o Brasil passa, então esse enfrentamento é importante também. Fiz um filme sobre o Marighella, não posso não estar presente nesse embate importante contra o fascismo. O Bolsonaro ataca todos nós, a democracia, o jornalismo, o tempo inteiro. Não podemos deixar esse campo avançar sobre o campo democrático, seria um desserviço à memória de Marighella.

 

“Marighella” é um filme tenso, com câmera na mão, muito focado nos atores. Como você se preparou para dirigir?
O filme sintetiza muito a minha relação com o cinema brasileiro. Sou um ator muito identificado com a retomada do cinema a partir dos anos 2000. Fiz personagens brasileiros de todos os tipos e acho que o cinema nacional tem muito isso, desde o Cinema Novo, de falar do país como ferramenta revolucionária, de transformação. Filmei ‘Marighella’ do jeito que gosto de ser filmado como ator. É um filme dirigido por um ator, então você sente que a minha câmera está dentro, nunca observando de fora. Meu interesse é sempre nos personagens, que são a porta de entrada de entendimento do contexto.





Quando o filme termina, no momento dos créditos, há uma sequência com atores 
cantando a plenos pulmões o “Hino Nacional”. É uma forma de tentar recuperar um de nossos símbolos?
O hino é nosso. Vou assistir à Olimpíada, um brasileiro ganha, toca o hino, começo a chorar. Entendo a dificuldade que temos de nos relacionar hoje com os símbolos que foram apropriados. Uma camisa da CBF nunca mais vou usar na vida, não tem jeito. Mas a gente não pode entregar para essa galera, eles não podem se apropriar do Brasil. Agora, a sequência não é uma cena. O comprometimento dos atores era muito grande, eles faziam exercícios de preparação antes de todas as cenas. Naquele dia, iam fazer uma cena muito difícil. Então se juntaram e não fui eu que pedi a eles. Deram as mãos e começaram a cantar o hino. Achei bonito e pedi para o diretor de fotografia (Adrian Teijido) filmar.

Carlinhos Marighella, filho de Marighella, e Clara Charf, companheira dele, tiveram alguma participação no projeto?
A família Marighella sempre nos apoiou muito, desde o começo. Foi a Maria Marighella (que está no elenco) quem me deu o livro do Mário Magalhães e disse que a gente tinha de fazer um filme sobre o avô dela. Maria é minha amiga da vida inteira de Salvador. Sou marighelista muito antes de pensar em fazer um filme sobre ele. A família foi muito generosa, nunca fez exigência, não pediu para ler roteiro, todos sempre abertos para conversar. Conversei com Carlinhos muitas vezes, com dona Clara algumas.

Carlos Marighella (Seu Jorge) é torturado em cena do filme de Wagner Moura (foto: O2 Filmes/divulgação)
 

Você está vivendo com sua família em Los Angeles desde 2018. Como é o retorno agora ao Brasil para lançar o filme?
Nunca me desconectei do Brasil. Leio todos os jornais do Brasil todos os dias, falo com meus amigos todos os dias. Vivo onde estou trabalhando. Vivi na Colômbia (para rodar a série ‘Narcos’) e depois nos EUA por causa do filme do Sérgio Vieira de Mello. Fiquei preso por causa da pandemia. Mas sou um artista e cidadão brasileiro conectado com o país. Minha produção artística sempre tem a ver com o Brasil, mesmo quando filmo fora. O que tenho de interessante como ator lá fora é o fato de ser da Bahia.



De forma realista, qual é a sua expectativa de público para o lançamento nos cinemas?
Não sei dizer. Todos os filmes que estão estreando no cinema não têm o mesmo retorno que teriam antes da pandemia, da força do streaming. O cinema mudou. Agora, meu filme é um filme popular. Dentro das circunstâncias, e aí falo independentemente da política, mas considerando a pandemia, o avanço do streaming e a diminuição do número de salas, tenho muita esperança de que dentro desse contexto ele faça uma performance muito boa. Porque a censura, além de tudo, é burra. Ela atiça a curiosidade das pessoas. Mais do que isso, tenho sentido que as pessoas estão abraçando o filme por conta de tudo, inclusive o estado das coisas no Brasil de hoje. As pessoas estão dizendo: ‘Eu quero prestigiar’. Para os movimentos sociais isso é muito claro, não só pela história, mas pelo que ele significa hoje.

“MARIGHELLA”

O filme estreia nesta quinta-feira (4/11). Pré-estreias a partir desta segunda nos cines BH (1º e 2/11, às 20h30, e 3/11, às 20h40); Boulevard (1º a 3/11, às 20h40); Cidade (1º a 3/11, às 14h20, 17h20 e 20h20); Contagem (1º a 3/11, às 17h30 e 20h30); Del Rey (1º a 3/11, às 20h35); Diamond (1º a 3/11, às 20h20); Itaupower (1º a 3/11, às 20h30); Minas (1º a 3/11, às 20h30); Monte Carmo (1º a 3/11, às 20h30); UNA Belas Artes (2 e 3/11, às 20h10); Via Shopping (1º a 3/11, às 20h20). 

NA TV

Nesta segunda-feira (1º/11), Wagner Moura é o entrevistado do programa “Roda viva”, que começa às 22h, naTV Cultura e na Rede Minas.