Jornal Estado de Minas

ARTES VISUAIS

Paulo Nazareth abre no Palmital paralela 'desencarrilhada' da Bienal de SP


O artista Paulo Nazareth é, em essência, um viajante. “Moro quando estou”, afirmou ele ao Estado de Minas, no início da semana passada, um dia antes de dar início a uma incursão pelo Norte do estado, fronteira com Goiás. Falou de sua residência, no Alto do Palmital, em Santa Luzia, a chamada Casa Borun/Povo de Luzia, referência aos seus próprios antepassados – tem ascendência indígena e afro-brasileira.





É a segunda viagem que Nazareth faz em um ano e meio. A primeira foi para São Paulo, onde ele participa da exposição “Faz escuro mas eu canto”, tema da 34ª. Bienal de Arte, em cartaz até 5 de dezembro. Na Casa Borun, ele abriu a individual “Advertência”, mostra paralela à Bienal, que traz trabalhos que dialogam com o que está sendo exibido na coletiva paulistana. 

Nazareth deixou tudo pronto e partiu para a estrada. Para um artista inquieto, que tem no deslocamento uma das bases de sua obra, pautada principalmente pela instalação e performance (10 anos atrás, ele chegou aos EUA por terra, apresentou na Art Basel Miami a instalação “Mercado de artes/Mercado de bananas”, que lhe deu prestígio internacional), permanecer em casa em decorrência da pandemia poderia ter sido um desafio. Mas não foi, afirmou. 

“Talvez nos primeiros dias, até eu voltar a esse lugar do pequeno. Sempre tive uma relação entre o macro e o micro. Comecei a fazer caminhadas no entorno, e no Palmital são muitos becos e ruelas. Mais do que 365, então podia fazer um para cada dia do ano. São pequenas viagens. Não dá nunca para alguém dizer que conhece o mundo inteiro. Às vezes se conhecem linhas e caminhos”, diz ele.




ÁFRICA 

Obras recentes do artista tratam da questão macro, como ele chama. Para “Cadernos de África” (iniciado em 2012 e ainda em curso) ele vem percorrendo o continente africano a pé. Já “O vermelho interior” (2018) remete ao período em que cruzou, em uma caminhonete vermelha carregada com melancias de concreto, a Costa Leste dos EUA.

“O tema não muda, o que está hoje no meu trabalho já apareceu em 2008, no Palácio das Artes”, acrescentou, referindo-se à exposição “Sobre o deslocamento de coisas e gente”. “As pessoas são objetificadas e os objetos, personificados. Venho trabalhando com isto, que é um pouco sobre a construção no mundo contemporâneo.” 

Na Bienal, é possível ver parte do trabalho de Nazareth do lado de fora do Pavilhão, no Parque Ibirapuera. “Corte seco”, obra comissionada para o evento, reúne nove esculturas de grande porte que ele chama de outdoors. São imagens de metal apoiadas em estruturas de madeira da vereadora Marielle Franco, do guerrilheiro Carlos Marighella, do líder indígena Mario Juruna, do militar João Cândido, chamado “Almirante Negro”, líder da Revolta da Chibata (1910), e da líder quilombola do século 18 Tereza de Benguela, entre outros.    
"Corte seco", que inclui imagens da vereadora assassinada Marielle Franco, está na Bienal de São Paulo, que vai até dezembro (foto: Levin Fanan/Divulgação)

“São personagens que ficam às margens do reconhecimento oficial. Não há um monumento a João Cândido, por exemplo. Muitos deles tampouco aparecem nos livros escolares”, observa o artista. Tais imagens também podem ser vistas na mostra em Santa Luzia, só que em outro formato. Nazareth reuniu 107 desenhos, projetos feitos para os outdoors da Bienal. “Na verdade, como eu trabalho com projetos, eles, em si, já são o objeto.”

Ainda na Bienal está a série “Panfletos”. São panfletos produzidos pelo artista com textos e frases que tratam de temas como racismo, violência e sistema carcerário. São distribuídos gratuitamente. Entre as sugestões propostas por ele nos textos está um projeto de lei para a criação de uma área de livre comércio entre o Brasil e a África.





Duas performances/instalações ainda estão expostas no Pavilhão da Bienal. “Levante/A impressão” é uma oficina de impressão de xilogravura. Durante o evento, uma pessoa realiza as impressões com a imagem de uma faca – posteriormente, elas são penduradas em um varal e podem ser negociadas com o público. 

Já “Levante/Amolador de facas” tem conceito semelhante. Fragmentos de ferro-velho se transformam em uma pilha de metais afiados pela ação de um amolador – desta maneira, há um deslocamento de sentido dos objetos.
Paulo Nazareth abriu sua individual no Palmital e viajou na semana passada na direção de Goiás (foto: Daniel Pinho/Divulgação)

TROCA

 Tais obras são replicadas, em menor escala, na individual em Santa Luzia. Cópias de uma xilogravura com a imagem de uma faca podem ser trocadas pelos visitantes da exposição mineira. Basta que levem tabaco, açúcar ou rapadura para realizar a troca.





“Este trabalho tem uma relação com o mercado. O tabaco, por exemplo, era muito utilizado para trocar por pessoas que vinham das diásporas africanas”, explica Nazareth. A imagem da faca também pode ser impressa em uma camiseta – o visitante tem que levar uma blusa para a impressão, para a qual é cobrada uma taxa de R$ 2.

Outro trabalho na individual que se relaciona com a história brasileira é a série chamada “Criados-mudos”, 17 objetos de resina dentro de um móvel de madeira. “Ela é resultado de uma pesquisa que fiz recolhendo produtos do mercado que levam o nome de povos indígenas ou de herdeiros da diáspora africana”, diz ele. 

A leva de trabalhos é desdobramento de outro projeto, “Produtos de genocídio” (2017), em que reuniu produtos e organizações que se utilizaram de nomes e elementos da cultura indígena e afro-brasileira. Estão expostos, nos criados, produtos como as farinhas de milho Índio e Zumbi, o chimarrão Criolo, os cafés do Barão e Caboclo (ficam juntos, fazendo um contraponto). 





Nazareth chama a mostra “Advertência” de uma paralela “desencarrilhada” à Bienal, já que começou um mês mais tarde e termina também um mês depois da exposição em São Paulo. Para ele, a exposição na Casa Borun “é um cismar sobre a relação de poder de uma autoridade absoluta e os que a seguem sem a questionar”.

PAULO NAZARETH

. Na Bienal 

Artista participa da coletiva “Faz escuro mas eu canto”, em cartaz até 5 de dezembro no Pavilhão da Bienal, Parque Ibirapuera, portão 3, Vila Mariana, São Paulo. Informações: bienal.org.br

. Em Santa Luzia

Mostra “Advertência”, em cartaz até 4 de janeiro na Casa Borun/Povo de Luzia, Rua 18 de abril, 21, Nova Esperança, Alto do Palmital, Santa Luzia. Visitas devem ser agendadas pelo (31) 99808-7481/3100-0413. 

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