Jornal Estado de Minas

CINEMA

Filme que venceu concurso em Minas vai recontar mito de rainha assassinada

A diretora é baiana (Everlane Moraes); a produtora é mineira ( Fernanda Vidigal, da Carapiá Filmes). Juntas, elas pretendem realizar o longa “O segredo de Sikán", narrativa fantástica com uma abordagem feminista em seu modo de recontar um mito africano em terras nordestinas. 





O projeto do filme foi o vencedor da 12ª edição do Brasil CineMundi, evento paralelo à Mostra CineBH, dedicado a filmes em gestação. O anúncio da escolha do júri pela coprodução Minas/Bahia foi feito no último domingo (5/10), em cerimônia virtual. 

Everlane Moraes, de 33 anos, é graduada pela Escola Internacional de Cinema e TV de Cuba (EICTV-Cuba) e, desde 2012, se dedica à direção cinematográfica. Natural de Cachoeira (a 120 quilômetros de Salvador), ela já dirigiu oito curtas. Com a produção documental “Pattaki” (2018), ela concorreu no Festival Sundance, o principal evento do cinema independente dos EUA.

Artista negra, Everlane afirma que seus filmes transitam entre diferentes gêneros e formatos, mas tratam, sobretudo, de “questões sociais, filosóficas e espirituais da diáspora negra no mundo, principalmente no Brasil”. Com “O segredo de Sikán” não é diferente. 





O projeto, ainda em fase de desenvolvimento, surgiu em Cuba, há alguns anos. Foi na ilha que Everlane conheceu a mineira Fernanda Vidigal durante a formação na EICTV, entre 2015 e 2018. As duas firmaram a parceria para produzir “O segredo de Sikán”, com a participação da roteirista Tatiana Monje, de Costa Rica.

A história tem como base a mitologia afro-cubana de Sikán, que tem origem na Nigéria, mas a situa em terras brasileiras. "É a ligação entre três países (Brasil, Nigéria e Cuba), o que simboliza uma tríade da diáspora negra”, afirma Everlane.

A diretora Everlane de Moraes tem oito curtas no currículo e já participou do Festival de Sundance, com 'Pattaki' (2018) (foto: Natália Medina/Divulgação)

PRINCESA 

Na versão original, a princesa Sikán recebe uma revelação em segredo de uma divindade no Rio Odánn. A profecia dizia que ela seria a rainha da cidade nigeriana de Calabar e traria paz à região, que vivia em constante estado de guerra. No entanto, a princesa revela o segredo ao seu amante, e com isso é condenada à morte por homens de sua tribo.





A diretora observa que a lenda reproduz o machismo, porque julga e sacrifica uma mulher que ameaçava a hegemonia política dos homens. “Esse mito, assim como muitos outros, representa a mulher como a causadora do desequilíbrio, dos males da sociedade. É sempre a mulher quem tem o pecado. Ela é indiscreta, não guarda segredos, é sedutora. São mitologias que contam a versão pelo ponto de vista masculino, que condena essas personagens.”

Everlane cita outros exemplos: “É a mesma coisa com Eva, que seduziu Adão a comer a maçã e até hoje a gente sofre com isso. Helena, por sua beleza, provocou a Guerra de Troia. Pandora era curiosa e abriu a caixa, libertando todos os males do mundo. É um mito que justifica a perda do poder social e político das mulheres. Sikán supostamente contou o segredo sagrado, então não era digna de ser uma rainha”. 

Nesse seu primeiro longa de ficção, Everlane dará a Sikán uma nova representação, como uma mulher forte e discreta. No momento de sua condenação, ela pula no rio e se transforma em um peixe mágico, uma espécie de divindade que vai carregar a profecia durante séculos. Ela percorre as águas durante 3.500 anos, até chegar ao Rio Paraguaçu, em Cachoeira (BA).





A cartografia semelhante entre a região baiana em que Everlane nasceu e Calabar influenciou sua decisão de levar a narrativa para o Nordeste, onde se concentra a maior comunidade negra fora da África. Na versão original, duas tribos rivais são divididas pelo Rio Odánn – assim como Cachoeira e São Félix, na Bahia, são cortadas pelo Rio Paraguaçu. “Para mim é importante porque mostra uma Bahia pouco conhecida e pouco explorada. E mais profunda, nesse sentido”, afirma a diretora.

A produtora mineira Fernanda Vidigal classifica como 'simbólica' a vitória do projeto, que dá visibilidade ao trabalho de mulheres negras no cinema (foto: Rafael Freire/Divulgação)

NOITE ETERNA 

Entretanto, o Nordeste que será visto em “O segredo de Sikán” é distópico. O mundo passou a ser habitado somente por pessoas negras, que nunca viram a luz do Sol. A injustiça na condenação de Sikán trouxe a “noite eterna”, ao longo dos séculos. A sociedade é governada por homens que estão sempre guerreando. As mulheres são subjugadas e não têm poder político. 

A trama gira em torno de cinco personagens, que são mulheres negras: a artista, a mulher trans, a mãe, a religiosa e a prostituta. Everlane Moraes conta que sonha em ter a atriz mineira Gracê Passô como protagonista e está em negociação com ela para o papel. O restante do elenco será formado por não profissionais. Todas as cenas serão gravadas no período noturno. 





 Na narrativa, as mulheres organizaram uma irmandade secreta que busca mudar a realidade, investigando o mito de Sikán. Elas tentam resgatar o peixe mágico, sem chamar a atenção dos homens, e entregar o segredo para a herdeira da princesa. Caso a missão seja bem-sucedida, as mulheres finalmente poderão reinar, trazendo a paz e o sol de volta ao horizonte.

 “É um filme sobre a sororidade, a união entre as mulheres. Elas se comunicam com o olhar, com a cumplicidade, porque precisam acabar com a guerra que mata seus filhos e maridos", diz a diretora. Embora inspirado em uma mitologia antiga, o filme discute questões atuais e problemas crônicos da sociedade, propondo uma “mudança de paradigma”, segundo Everlane.

“A gente está falando de um poder que as mulheres têm, mas foi retirado das mãos delas. Então, é restituí-lo através desse mito, na verdade”, diz. “Acho que é um bom momento para discutir os espaços de poder, não como uma coisa ‘homem contra mulheres’, nada disso. Mas que existe espaço para todos exercerem seu direito à representatividade e à participação política.” 

APOIO 

Na 12ª edição do Brasil CineMundi, o projeto conquistou mais de R$ 180 mil em serviços para a produção do filme – ainda sem previsão de estreia. Após mais de 15 reuniões com apoiadores da mostra,“O segredo de Sikán” ganhou acesso a empréstimo de equipamentos, serviços de finalização e de pós-produção, além da tradução do roteiro para o francês. Os financiamentos vêm da França, Alemanha, Argentina e EUA.





Fernanda Vidigal, de 28 anos, afirma que foi muito simbólico conquistar este reconhecimento em sua terra natal. “É fundamental para fortalecer o cinema feito por mulheres negras em Belo Horizonte. A gente tem muitas pessoas potentes aqui, que muitas vezes não têm oportunidades para desenvolver os seus projetos”, diz. 

Ela também destaca a união entre as regiões ao longo da produção. “Para a gente é superespecial, porque estamos conectando mulheres pretas que trabalham com cinema e animação em Minas e na Bahia.” No longa, a introdução da história será feita em animação pela belo-horizontina Mírian Rolim. A ilustradora do projeto é a baiana Mayara Ferrão. 

Fernanda diz que “o projeto se torna muito mais viável a partir do momento em que outras pessoas acreditam nele também. Isso dá uma potência grande, então é só agradecer”. 

*Estagiário sob a supervisão da editora Silvana Arantes

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