Jornal Estado de Minas

ARTIGO

O dia em que Jean-Paul Belmondo se esbaldou em Ouro Preto


No início dos anos 1970, existia em Ouro Preto uma loja de fotografias que encontrou sua verdadeira identidade quando um turista enfiou a cabeça pela porta e perguntou se o boteco já estava fechado. Era propriedade coletiva de estudantes que tinham sido aprendizes do fotógrafo Zé Lima, que os recrutara para dar conta da grande demanda de casamentos e formaturas que enchia a sua agenda. 





Situada estrategicamente na esquina da Rua Direita com a Praça Tiradentes (dividida com o camelô "seu"Nezinho), a loja não passava de um porão da casa dos Gonçalves, dividido em três partes: recepção, estúdio e laboratório. No primeiro a doce recepcionista Marília tentava administrar o caos predominante. O estúdio, nas horas vagas do dia e em todas as noites, era a "área curriolar" propriamente dita. O laboratório, além dos solventes para a revelação de filmes, era a adega suprida por fornecedores provenientes de Calambau e arredores. 

Ali a festa nunca tinha fim: depois de um certo carnaval muito intenso, insone, saí do Rosário de madrugada em busca de alguma alma penada perdida pela noite; vi luz saindo por baixo da porta da loja e pensei que alguém terminava alguma encomenda atrasada: surpresa! Casa lotada com desenfreada sequência da folia que só terminou no sábado seguinte, por exaustão absoluta e ameaças de internamento coletivo na Santa Casa. 

Da loja saíam estranhos cortejos: numa nebulosa noite de terça-feira, uma fileira de rapazes pelados saiu dali e foi até a frente da estátua de Tiradentes, onde foram realizadas confusas coreografias por volta das duas da madrugada; dali também partiram, a bordo da famosa jardineira "Chiquitona", as inesquecíveis excursões etilicoculturais denominadas "Circuito do tear" e "Dois dias no Caraça" - ambas deixaram marcas indeléveis em municípios vizinhos, atônitos com os números de circo e dublagens de Elvis Presley protagonizados por Ivon Caldeira, dramatizações de Shakespeare por Ney Cokda e show de percussão por integrantes da charanga do Carlota, tudo em meio a névoas de tabaco. 





Existem registros fotográficos e cinematográficos destes feitos, que estão guardados em locais incertos e não sabidos por alguém temeroso de macular seu presente com as delícias da mocidade. Espero que ainda não tenham sido destruídos.

No estúdio, o conjunto de paletó, camisa branca e gravata-borboleta, usado para as fotos de formatura, era vestido também por um vasto espectro de modelos que foram compondo o incrível painel estampado em uma parede: a Galeria dos Formandos da Escola da Vida; ali eram encontrados desde o prefeito Alberto Caram até Beréu, aquele que conseguia ranger os dentes perto do Museu da Inconfidência e se fazer ouvir na porta do Centro Acadêmico.

Naqueles tempos pré-internet, tinha-se notícia ali dos últimos combates da Guerra do Vietnã, trazidos diretamente por americanos desertores que tinham fugido da linha de frente poucos meses atrás. Foram também conhecidos detalhes dos bastidores do concerto de João Gilberto com Caetano, Gil e Betânia em São Paulo, trazidos pelo violonista Joãozinho Bossa Nova: ele tinha sido o roadie encarregado de suprir João com bolas de ping pong e erva do Norte, e se dedicava, única, exclusiva e neuroticamente, acorde por acorde, a reproduzir o repertório do mestre.



Certa madrugada, ali também foi ouvido, com as paredes tremendo, um recital de trechos de óperas esgoeladas pelo paisagista Burle Marx. Mas nada superou o acontecido num fim de tarde tedioso. Um casal de turistas entrou para comprar um filme. De repente, alguém repara melhor o cliente, e...

- Jean Paul Belmondo?.
- Oui!
-  Toma uma cachacinha?
- Sûrement!

Providenciado o garrafão, seguiram-se as doses, cujo gosto foi tirado com linguiça providenciada no Lampião e acompanhadas por um violão que sempre permanecia de plantão no laboratório. O francês saiu mais pra lá do que pra cá, prometendo voltar sempre. 

Como não havia espeto de pau naquela casa de ferreiro, as cenas foram devidamente documentadas e, no dia seguinte, requisitadas pelo eterno correspondente do Jornal do Brasil, Maurílio Torres. Dois dias depois, escutam-se rumores vindos do Restaurante Universitário: uma turba reunida em volta do painel da entrada do restaurante esbaldava-se com a exposição de um recorte do jornal carioca. Tratava-se da coluna de

Zózimo Barroso do Amaral que estampava uma foto de Jean Paul com seus anfitriões ouro-pretanos. Abaixo, a legenda demolidora: "Jean Paul Belmondo em Ouro Preto bebendo com desocupados locais".





Foram dias de gozações infindáveis, fortemente incrementadas quando circulou em Ouro Preto uma informação suplementar que abalou a reputação dos irresistíveis don juans da loja: deslumbrados com "Pierrot le fou", a turma nem prestou atenção em sua acompanhante. Através da coluna do Zózimo todos ficaram sabendo tratar-se de sua namorada, a deslumbrante Laura Antonelli, musa geral das sessões do Cine Vila Rica: a tentativa de explicação fazia menção à morenice adquirida por ela nas praias cariocas. Não funcionou.

Pano rápido. 

* Professor aposentado da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop)

audima