Jornal Estado de Minas

LITERATURA

Zuenir Ventura critica desprezo à saúde: 'Este país, hoje, é um cemitério'


Zuenir Ventura viu a morte de Getúlio Vargas, a violência da ditadura militar, a tortura, a censura, maio de 1968, a hiperinflação dos anos 1980 e a epidemia da Aids, mas nunca imaginou assistir ao Brasil passar pela situação atual. “Vivi todas as possíveis mazelas que este país teve. Agora, nunca vivi um momento em que você tinha um acúmulo de crises como este que a gente está vivendo”, conta o autor de “1968: O ano que não terminou”.



“Temos crise de saúde, política, econômica. Parece que todas as crises se concentraram neste momento. Esse cinismo, esse desprezo pela saúde, isso nem na ditadura, quando houve censura e morte”, afirma o escritor e jornalista. “Nunca vi um desprezo tão grande pela saúde, pelo próximo. É chocante, este país, hoje, é um cemitério.”

ESPANTO

Um dos nomes mais importantes do jornalismo brasileiro das últimas cinco décadas, Zuenir Ventura ainda se espanta com o Brasil. O mineiro, que completa 90 anos nesta terça-feira, lamenta que a velhice seja vista como problema neste país em que 13% da população tem mais de 60 anos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Zuenir rebate as declarações recentes de autoridades brasileiras lamentando o desejo do brasileiro de viver 100 anos. “Criticar a velhice é uma estupidez, porque a outra alternativa é não chegar lá”, diz, antes de lembrar artistas que se tornaram históricos ao produzir obras-primas após os 70. Giuseppe Verdi compôs “Otello” aos 73 e Chaplin ainda fazia filmes e filhos aos 80.





“Quero ver se esses economistas todos, com a idade desses gênios, terão obras parecidas com as desses caras que viveram mais de 80 anos”, desafia. “Não chego a ponto de dizer que a velhice é maravilhosa, tem problemas, claro. Mas sou feliz, porque tenho boa saúde, tenho meus filhos, meus netos.”

Para celebrar o aniversário do escritor, a Editora Objetiva lança a reedição de “Minhas histórias dos outros”, acrescida de novos textos e da atualização de algumas narrativas da publicação original, de 2005.

Entre as novidades mais marcantes da nova edição está a atualização de “A saga de uma testemunha”, texto de Ventura a respeito de como assumiu a tutela de Genésio Ferreira da Silva, menino de 14 anos que presenciou o assassinato de Chico Mendes.





Testemunha-chave que levou à condenação dos assassinos, Genésio poderia ser morto se permanecesse no Acre. Por isso, Ventura decidiu, com permissão judicial, levá-lo para o Rio de Janeiro. Vítima de um trauma ainda muito jovem, Genésio deu trabalho ao longo dos anos, sucumbindo à dependência alcoólica e à depressão.

Quando Zuenir Ventura escreveu o primeiro texto, o rapaz vivia um de seus momentos complicados. Na atualização para a nova edição, Genésio estava bem e prestes a se casar.

“Digo que é a história mais sofrida e difícil de contar, porque terminava para baixo, eu me perguntava onde foi que errei. Mas o telefonema dele dizendo que estava noivo e, sobretudo, que tinha deixado de beber foi a melhor coisa. A grande história dessa edição é esta: Genésio resiste”, garante.

DRUMMOND 

Uma das pérolas do novo livro é a entrevista concedida pelo poeta Carlos Drummond de Andrade quando Ventura era diretor da sucursal da revista Veja, no Rio de Janeiro. Primeiro, o jornalista não acreditou que o poeta, avesso a entrevistas, pedia para ser entrevistado. Achou que era trote. Depois, precisou convencer o editor de que Drummond, sim, era um grande poeta e valia a entrevista.





“Drummond tinha ficado muito tempo sem dar entrevistas. Realmente não sei, até hoje, por que ele tinha resolvido dar a entrevista para mim”, comenta.

Também merece destaque o relato sobre o encontro entre quatro Antônios geniais: Callado, Candido, Jobim e Houaiss. Zuenir Ventura foi o responsável por conduzir a conversa, que costuraria o documentário de Dodô Brandão, filmado em 1993. “Para mim, foi uma surpresa e muito divertido, porque eram todos muito engraçados”, lembra.

Ele detesta escrever. Meio por acaso, Zuenir acabou numa redação de jornal e precisou do empurrão considerável da mulher, Mary, para colocar “1968: O ano que não terminou” no papel. Sorte dos leitores.

“Minhas histórias dos outros” traz encontros memoráveis do autor com personalidades brasileiras, de Glauber Rocha a Rubem Fonseca, com textos sobre momentos emblemáticos da história do Brasil.



“MINHAS HISTÓRIAS DOS OUTROS”
De Zuenir Ventura
Editora Objetiva
194 páginas
R$ 59,90

Genésio Ferreira da Silva no documentário sobre a sua saga (foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

O menino herói

Zuenir Ventura salvou a vida do garoto Genésio Ferreira da Silva, cujo depoimento foi fundamental para a condenação a 19 anos de prisão dos assassinos do seringalista acreano Chico Mendes (1944-1988) – o fazendeiro Darly Alves, mandante da execução, e o filho dele, Darcy Alves Ferreira, autor dos tiros de escopeta. Chico era conhecido internacionalmente por lutar contra o desmatamento e a favor da preservação da floresta.

Jurado de morte, o menino, de 14 anos, foi acolhido pelo jornalista, que o levou para morar com sua família no Rio de Janeiro, onde ficou até completar 18 anos.

Essa história é contada no documentário “Genésio – Um pássaro sem rumo: a única testemunha do caso Chico Mendes”, dirigido por Maria Fernanda Ribeiro, autora do roteiro em parceria com Carlos Eduardo Magalhães. A fotografia é de Bruno Kelly. O filme pode ser assistido no canal da Amazônia Real no YouTube.

Genésio, que hoje tem 46 anos, lançou o livro “Pássaro sem rumo: Uma Amazônia chamada Genésio”, com a colaboração do jornalista Elson Martins e de Zuenir Ventura. A publicação é da Editora Instituto Vladimir Herzog.




Zuenir Ventura e o garoto Genésio, no Acre, nos anos 1980 (foto: Reprodução)


Duas perguntas para Zuenir Ventura

jornalista

O Brasil da pandemia causa espanto ao senhor?

Para mim, a Aids foi uma coisa muito difícil, perdi muitos amigos, mas o que está havendo agora, as estatísticas são 40 vezes mais mortes em um mês do que a Aids. É um momento muito difícil. Sou otimista, pessoalmente estou muito feliz, mas você não pode ser totalmente feliz no país que hoje é um cemitério, nunca vi enterrarem tanta gente. Economistas e tecnocratas falam muito mal da velhice, que não é produtiva. Paulo Guedes, com aquela declaração polêmica criticando e debochando que brasileiro quer viver 100 anos... É fácil elogiar a primavera, agora o outono tem uma beleza também, quando você tem olhos pra ver.

Em mais de 50 anos de jornalismo, o que mais chama a atenção do senhor na maneira como se trabalha a notícia no século 21?

A gente está vivendo um momento difícil no jornalismo, com um governo que despreza e, se pudesse, mandava fechar os jornais. As entidades jornalísticas reclamam muito de como estamos sendo tratados pelo poder, tudo é culpa do jornalismo. Eu acho que a gente vive um momento heroico, porque fazer jornalismo é muito difícil. Não só porque a realidade está muito desagradável de ler e de ver. Hoje, o emissário da má notícia é o culpado pela má notícia. Até o leitor, ou ouvinte, diz que não aguenta ver tanta miséria. Como se a gente escolhesse. Vivemos momentos muito difíceis, mas o que a gente vive hoje é difícil porque os objetos do nosso trabalho são muito ruins. O leitor reclamava muito, na época da ditadura, que a gente só dava boas notícias, mas éramos obrigados a dar, a censura cortava as más notícias. A gente vive sempre sendo culpado por alguma coisa.

audima