Jornal Estado de Minas

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Crime bárbaro de 1992 volta à tona com a série 'O caso Evandro'


No início da década de 1990, uma série de crianças, a maioria meninos, desapareceu no Paraná. Um deles, Evandro Ramos Caetano, de 6 anos, sumiu em 6 de abril de 1992, quando deixou a escola em que a mãe trabalhava, na cidade litorânea de Guaratuba, para ir à sua casa buscar um joguinho eletrônico. 





Colégio e residência ficavam a uma curta distância. Cinco dias mais tarde, seu corpo foi encontrado em um matagal. Vísceras e coração haviam sido arrancados, mãos e pés amputados. 

“O caso Evandro” (também chamado “As bruxas de Guaratuba”) teve repercussão nacional, gerou o mais longo júri da história da Justiça brasileira. Seus desdobramentos tomaram as décadas seguintes. Voltou à tona em 2018, por meio do curitibano Ivan Mizanzuk, de 37 anos, professor universitário que, até então, conciliava a academia com a produção de podcasts.

Em 31 de outubro de 2018, três anos depois que Mizanzuk começou sua pesquisa, estreou “O caso Evandro”. A investigação gerou a quarta temporada do “Projeto Humanos”, série de podcasts com histórias reais. Trinta e seis episódios mais tarde (o último deles lançado em 10 de novembro de 2020), o projeto soma 53 horas e 9 milhões de downloads. 





Com seu lançamento na Globoplay, “O caso Evandro” se tornou a primeira série nacional nascida de um podcast. Os episódios estão sendo lançados semanalmente. Nesta quinta (20/5), estreiam o terceiro e o quarto – as exibições vão até 10 de junho, quando será disponibilizado o oitavo e último.

DOCUMENTÁRIO 

O professor curitibano Ivan Mizanzuk se inspirou no formato de áudios documentais, comum nos Estados Unidos, para criar seu podcast
Diferentemente da imensa maioria dos podcasts produzidos no país, em formato de bate-papo, o de Mizanzuk obedece ao gênero do storytelling (contar histórias), basicamente um documentário em formato de áudio. 

“Quando comecei o ‘Projeto Humanos’, vi que os Estados Unidos tinham um cenário mais desenvolvido, com muita grana envolvida e programas de sucesso, que geravam lastro de impacto cultural. O formato storytelling ainda é independente aqui, precário. E as narrativas exigem uma noção de roteiro, estruturação da história”, diz ele.





O encerramento da série vai “casar” com o lançamento do terceiro produto derivado da pesquisa de Mizanzuk, o livro “O caso Evandro” (Harper Collins Brasil), previsto para 14 de junho. Os 1,5 mil exemplares autografados pelo autor colocados em pré-venda na Amazon esgotaram-se em menos de 24 horas.

“O podcast fui eu, Ivan, tentando entender a história e dividindo minhas dúvidas com o ouvinte. O grande problema do podcast é que você não vê o rosto das pessoas, e o caso tem mais de 200 personagens. Então, sempre tinha que fazer recapitulações longas para lembrar de um cara que tinha aparecido 20 episódios atrás. Tem episódios de 2h30min de duração. Na série, a minha pesquisa estava pronta e ela é a visão de outras pessoas. O livro é a versão mais bem-acabada e madura do meu trabalho de pesquisa”, comenta.

Mizanzuk atua na série como pesquisador e consultor. A direção é de Aly Muritiba, cineasta baiano radicado no Paraná, que tem uma produção autoral em cinema, tanto ficcional quanto documental. Nos últimos anos, dirigiu séries de sucesso – “Irmandade” (2019), da Netflix, e “Carcereiros” (2018), da Globo, entre elas. 





Agora “colorida” por imagens de arquivo, depoimentos atuais e reconstituições, “O caso Evandro” traz todos os elementos de uma produção true crime (crimes reais, segmento popularíssimo na TV americana, que vem crescendo no Brasil via streaming). A série é aberta por uma curta reconstituição, que mostra Evandro em seu último dia em casa, antes de ser levado. 

RITUAL 

A partir disso, a narrativa entremeia depoimentos gravados para a série e muita imagem de época. O episódio inicial concentra-se no desaparecimento de Evandro; já o segundo é focado nos envolvidos com o crime. Foram presos três homens, um deles um pai de santo. Eles teriam agido a mando da mulher e da filha do prefeito de Guaratuba, posteriormente presas – um ritual de magia negra para garantir as próximas eleições utilizando o garoto como oferenda foi o motivo do crime. O caso vai longe, é o que fica claro desde esse início.

“O espírito da série é poder usar esse caso para fazer uma profunda reflexão sobre segurança pública no Brasil, cobertura da mídia, o meio jurídico. Para mim, o caso é um símbolo de um monte de pontos sobre os quais é preciso refletir no país”, afirma Mizanzuk. 





Ele prefere não adiantar o que os próximos episódios revelam. “A história do Leandro Bossi (menino de 7 anos de Guaratuba que desapareceu em fevereiro de 1992) está intimamente ligada à do Evandro. Não há como falar de uma sem falar da outra.”

O podcast “Projeto Humanos” foi lançado em agosto de 2015, com a temporada “As filhas da guerra”, sobre uma sobrevivente do Holocausto. A quinta temporada, que Mizanzuk pretende lançar neste ano, agora com o selo da Globoplay, é sobre o caso dos meninos emasculados de Altamira, crimes ocorridos no interior do Pará entre o final dos anos 1980 e o início dos 1990.

“Há uma chance grande de meus próximos três projetos serem sobre crimes no Brasil.  Precisamos analisá-los de maneira aprofundada, sem sensacionalismo”, diz. Ele avalia que “qualquer resposta é um chute mal dado” sobre o que motiva um público sempre crescente a acompanhar casos de crimes reais. 





“Nesta discussão, sempre se fala de um desejo de morbidez. Mas acho que não. O que me impressiona é a quantidade de mulheres que consome true crime”, observa. “Acho que o que motiva as pessoas é o desejo de ter uma resposta. Um crime ocorre, há um mistério e dúvidas sobre o que aconteceu. Até que elas sejam sanadas, isso nos motiva. O incômodo de não ter alguma resolução é algo horrível.”

O CASO EVANDRO

Em podcast
Disponível em todas as plataformas de streaming de áudio e também no www.projetohumanos.com.br

Em série
Oito episódios no Globoplay. 
Nesta quinta (20/5) serão lançados os episódios três e quatro. 
Em 27/5, estreiam os de número cinco e seis; em 3/6, o de número sete; e em 10/6, o oitavo e último

Do podcast para a TV
Confira outros exemplos de séries derivadas do áudio

“Dirty John” (Netflix)

(foto: Netflix/Divulgação)
Em 2017, o jornalista Christopher Goffard, do Los Angeles Times, lançou o podcast “Dirty John”. Em seis episódios, ele acompanha a vida de John Meehan, um golpista que se envolveu com várias mulheres. O foco principal é o relacionamento de abuso e mentiras dele com a empresária Debra Newell e a família dela. Foi baixado 10 milhões de vezes nas seis semanas desde o lançamento e virou a série homônima, ficcional, na Netflix (2018). Em 2020, foi lançada a segunda temporada, tanto em podcast quanto em série, com uma narrativa também inspirada em um crime famoso ocorrido nos anos 1980 nos EUA.




“Homecoming” (Amazon Prime Video)

(foto: Amazon Prime Video/Divulgação)
Lançada em 2018, nasceu do podcast homônimo ficcional criado em 2016 por Eli Horowitz e Micah Bloomberg, também responsáveis pela adaptação televisiva. A trama trata de manipulação de consciência, a partir da relação de uma terapeuta com um veterano de guerra que tenta superar um transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) em uma instalação do Departamento de Defesa dos EUA. Na TV, Julia Roberts protagonizou a série, que, em podcast, teve no elenco Catherine Keener e David Schwimmer. Houve uma segunda temporada da série, mas sem relação com o podcast.

“Lore” (Amazon Prime Video)

(foto: Amazon Prime Video/Divulgação)
Lançado em 2015 e na ativa até os dias de hoje, somando 168 episódios, é um podcast com histórias assustadoras de não ficção. Cada episódio examina eventos históricos sobre o lado obscuro da natureza humana, geralmente pelas lentes do folclore. Estreou com uma história sobre vampiros. Em 2017 e 2018, ganhou duas temporadas como série, tendo o criador do podcast, Aaron Mahnke, como narrador.