Jornal Estado de Minas

ARTES CÊNICAS

'Minhas queridas' revela a angústia de Clarice Lispector longe do Brasil

A pandemia fez com que a distância se tornasse parte da rotina das pessoas. Nestes tempos de confinamento social, ela foi abreviada pelas facilidades tecnológicas de mensagens instantâneas e videochamadas. Cenário bem diferente da primeira metade do século 20, quando a jovem e recém-casada Clarice Lispector se mudou do Brasil para a Europa com o marido, o diplomata Maury Gurgel Valente.





Ao longo dos 15 anos que a escritora passou longe das irmãs, sua única referência familiar desde os 19 anos, quando ficou órfã, as cartas eram o meio possível de comunicação. Redigida por uma das autoras mais importantes da literatura mundial, essa correspondência é a rica matéria-prima da dramaturgia de “Minhas queridas”, peça que inicia sua temporada virtual na sexta-feira (19/3).

O espetáculo estreou no início de 2020 e ficou em cartaz com lotação esgotada no palco do Sesc Pinheiros, em São Paulo, nos primeiros meses do ano passado. A pandemia impediu a peça de cumprir o itinerário programado para o centenário de Clarice Lispector (1920-1977), celebrado em dezembro.

Com apoio da Lei Aldir Blanc, a montagem se reestruturou. Ganhou formato digital e agora poderá ser assistida em todo o país por meio do YouTube.

“Estamos extremamente agradecidas. Estreamos com grande sucesso em 2020, e o ano prometia muito. Mas veio essa pandemia terrível e as apresentações foram canceladas. Claro que estamos aprendendo com a temporada on-line, mas agradecemos por poder voltar e realizar nosso trabalho como artistas”, diz a diretora e dramaturga Stella Tobar.





A peça foi filmada e a gravação será exibida no canal da Cia. de Teatro Diversão até 28 de março. As filmagens foram planejadas para “todas as plataformas, TV, computador e celular”, afirma a diretora. Ela explica que a opção pela gravação, em vez da apresentação ao vivo, deve-se à melhor adequação aos protocolos sanitários. Múltiplas exibições em tempo real demandariam equipe maior e encontros em locais fechados.

Confidências e inquietações existênciais


A peça na web tem a mesma estrutura daquela apresentada há um ano. No palco, Marilene Grama e Simone Evaristo assumem os papéis delas mesmas, atrizes que ensaiam um espetáculo sobre Clarice Lispector, baseado na declamação das cartas dela publicadas no livro homônimo da peça, lançado em 2007.

O texto revela a intimidade de Clarice confidenciada às irmãs: inquietações existenciais, a relação com a maternidade e o drama da solidão em países estranhos sem a companhia do marido, sempre ocupado com as funções diplomáticas.





“As cartas são muito íntimas. Pensei em como isso viraria teatro, como transportá-las para uma dramaturgia prazerosa. O livro (‘Minhas queridas’) é ótimo, cada carta tem um acabamento literário incrível. É como saborear garrafas de champagne, porque ela escreve muito bem. Mas havia o desafio a respeito do que levar a público. Seria um público conhecedor da história dela ou um público que precisa ser apresentado a Clarice Lispector? Decidi que seriam ambos”, revela Stella Tobar.

Admiradora da obra de Clarice Lispector, que encenou em espetáculos anteriores como atriz, Stella procurou um fio condutor para chegar à dramaturgia desejada. “Há uma conexão entre o que ela fala sobre arte, sobre a dificuldade de escrever e sobre a própria criação literária. Então, fragmentei as cartas e coloquei duas atrizes em cena tentando montar uma peça. Essa metalinguagem traz um pouco da biografia da Clarice”, explica.

Guerra causou solidão

As cartas foram escritas quando a escritora havia acabado de lançar seu primeiro livro, “Perto do coração selvagem” (1943). “Houve o chamado urgente para o marido ir para o exterior por causa da Segunda Guerra, e ela fica lá dos 24 aos 40 anos. Eram outros tempos, mas foram anos de uma juventude em que ela acabou convivendo com momentos de muita solidão, falando sobre isso nas cartas. Acabou se viciando em calmantes, enfrentou grandes dilemas ligados ao papel de esposa e em relação à maternidade. Tudo isso está nas cartas. Foi este o fio condutor que procurei”, afirma Stella.





Após as sessões, haverá bate-papos on-line sobre Clarice Lispector com Eduardo Moreira, ator e fundador do Grupo Galpão, Yudith Rosenbaum, professora da USP, e Nádia Batella Gotlib, escritora e biógrafa da escritora, entre outros convidados.

“MINHAS QUERIDAS”
A temporada vai de amanhã (19/3) a 28 de março. Sessões às sextas-feiras às 20h, sábados e domingos, às 19h. Gratuito. Transmissão no canal da Cia. de Teatro Diversão e Arte no YouTube. Informações:www.facebook.com/teatrodiversaoearte

INTERCÂMBIO DE LINGUAGENS 

O Festival Internacional Intercâmbio de Linguagens (FIL), projeto idealizado pela atriz, dramaturga e teatróloga Karen Acioly, terá edição inteiramente virtual em 2021. Completando 18 anos, o evento será realizado gratuitamente de 19 a 21 e de 26 a 28 de março. A programação é inspirada no mito da caverna, de Platão, oferecendo poemas visuais, historietas musicadas, marionetes corporais, marionetes em 3D, dança, música e show-oficina, entre outras atividades. Microespetáculos foram criados especialmente para esta edição. Tudo estará disponível no site www.fil.art.br, onde também se encontra a agenda completa, e nas plataformas do festival no YouTube e Facebook. Classificação: livre

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