Jornal Estado de Minas

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'Doutor Castor' mostra como um bicheiro se tornou o 'rei do Rio'

Nos anos 1980 e 1990, a população ria de piadas racistas dos Trapalhões, se divertia com comentários homofóbicos no Chacrinha e acompanhava com admiração a trajetória do carismático cartola de futebol, dirigente de escola de samba e gângster Castor de Andrade





O banqueiro do jogo do bicho (morto em 1997, aos 71 anos) simboliza como poucos a tolerância da opinião pública com a moral flexível das autoridades, seja no futebol, na política ou na polícia no Rio de Janeiro. Trata-se, afinal, do único estado brasileiro que teve seis governadores presos ou afastados nos últimos seis anos. 

É nessa faca de dois gumes que se equilibra a série documental 'Doutor Castor', disponível no Globoplay. A narrativa começa com as credenciais do personagem central. Castor de Andrade foi um homem extremamente violento no controle dos seus territórios – o Bangu Atlético Clube, a Mocidade Independente de Padre Miguel e os pontos do bicho – e, ao mesmo tempo, um mecenas malandro e boa-praça, que era tratado como o rei do Rio.


Andrade foi um bandido-herói que transitou entre dois mundos. Adorava ser tratado como "capo de tutti capi" e cultivava hábitos copiados de filmes da Máfia, como o beijo no rosto dos comparsas, mas, ao mesmo tempo, era entrevistado com deferência em programas da TV. O momento mais emblemático foi, sem dúvida, uma entrevista para Jô Soares, no SBT, em 1990. 





O documentário da Globo resgatou a conversa na qual o apresentador solta sua risada contagiante ao ouvir o relato do bicheiro de quando foi assaltado. "Dei uma sorte muito grande que o assaltante me reconheceu e pediu desculpas." Infelizmente, Jô não foi ouvido sobre o episódio, o que certamente lhe causaria constrangimento

CONTRAVENÇÃO

A série dirigida por Marco Antônio Araújo deixa no ar as perguntas que não fo- ram feitas diante daquela figura mítica e sedutora. “Doutor Castor” não poupou a Rede Globo e escalou José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, amigo de Andrade e ex-executivo da emissora, para explicar o tom chapa-branca com o qual o bicheiro era tratado. "Eu não sou juiz nem nunca fui delegado. Para mim, o jogo do bicho é apenas uma contravenção. Criminosos eram as pessoas que estavam no governo."

O documentário teve como uma de suas bases centrais o livro mais completo já produzido sobre o tema: “Os porões da contravenção”, de Aloy Jupiara e Chico Otavio, que são entrevistados. Entre desfiles e enredos que marcaram época no auge da Mocidade, o documentário escancara o uso político do carnaval e mostra como a Liga das Escolas de Samba nasceu como uma espécie de agência reguladora do crime. 





Políticos eram seduzidos com o luxo nos camarotes da Sapucaí e depois agraciados com malas de dinheiro vivo. Também os atletas do Bangu e até juízes de futebol eram remunerados dessa maneira. Para além dos aspectos criminais, a série da Globo é também uma deliciosa viagem no túnel do tempo dos boleiros. 

BANGU

Nos tempos áureos de Castor de Andrade, quando a compra e venda do passe de atletas se dava muitas vezes em negociações de pontos do jogo do bicho, o Bangu foi a sensação do futebol fluminense e chegou à Libertadores. Foi favorito na final do Campeonato Brasileiro de 1985, mas deixou escapar o título nos pênaltis, diante do Coritiba. 

O time tinha um dono, mas era administrado de forma libertária. O time de Moça Bonita contou com grandes nomes, como Marinho, Ado, Arturzinho, Neto e Mauro Galvão. Como cartola, Castor era generoso, mas impiedoso. Andava sempre armado e estimulou seus capangas a agredir árbitros. 

Depois da morte do bicheiro, o império de Castor de Andrade se tornou palco de uma guerra fratricida sangrenta que ainda hoje frequenta as páginas policiais. O Bangu está na série D do Campeonato Carioca e a Mocidade segue em compasso de espera até o fim da pandemia.

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