Jornal Estado de Minas

MÚSICA

Filósofo Vladimir Safatle reflete sobre o tempo em novo disco como pianista



Filósofo, professor titular do Departamento de Filosofia e do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e também pianista e compositor, Vladimir Safatle acaba de lançar mais um single de Tempo tátil, seu novo álbum. O segundo movimento de Três peças para gestos ao piano chegou na sexta-feira (5/2) às plataformas digitais pelo Selo Sesc.




 
Trata-se da segunda faixa divulgada. A primeira foi O amor vai desterrar nossos corpos, ainda em janeiro, na qual o piano de Safatle tem o acompanhamento de voz de Caroline De Comi (soprano), além do violino de Renan Vitoriano. Já no lançamento da vez, ele se apresenta sozinho.
 
Segundo o pianista, Tempo tátil “não tem mais a forma-canção como horizonte”, como era o caso de Música de superfície (Tratore, 2019), seu primeiro disco. Reunindo composições feitas por ele nos últimos “seis ou sete anos”, o novo álbum “é uma espécie de exploração musical da maleabilidade do tempo”, conforme ele define. 
 
“Quis desfibrar o processo de composição. Suspender as relações mais estruturais da forma, desdobramentos meio laterais de um elemento em relação a outro. Uma espécie de decomposição”, explica.





GESTUAL O compositor destaca que essa proposta já era vista no primeiro single, “embora a voz sustente um eixo de unidade”. O novo lançamento, que é totalmente instrumental, evidencia isso ainda mais. “Essa música expõe bem claramente esse princípio para operar. A lateralidade. A escrita do piano a gente esquece, mas ela é muito gestual. Diz respeito à maneira como o corpo é construído pela técnica”, afirma. 
 
Safatle diz que “o peso do braço, a abertura que o braço faz, é uma forma corporal de expressão que a técnica do piano pressupõe. É uma estrutura horizontal, e não vertical. Então, a origem dessa música é a gestualidade do piano. A mão que se move para tomar posse do teclado. Esses gestos foram descosidos.”
 
Três peças para gestos ao piano é dividida em três movimentos, todos com menos de dois minutos de duração. O terceiro movimento será lançado como single na próxima sexta (12/2). Até 19 de março estão previstos ainda outros três lançamentos: Instância e explosão, na qual a bateria acompanha o piano, fazendo jus ao título; O solfejo de nossas filhas, que tem o próprio Safatle em declamação poética; e Espaço liso, faixa instrumental, mas que inclui outros instrumentos de corda. 




 
Totalizando 13 faixas, o álbum propõe nuances musicais que poderiam ser chamadas de experimentais. Contudo, seguem um propósito conceitual. “Eu queria explorar um certo fantasma nacional. Temos a ideia do Brasil como uma terra sem lei, sem rei, sem fé, uma terra onde falta linha de estrutura. Mário de Andrade até fala da 'imundície de contrastes’. Então, em vez de recusar, quis justamente afirmar isso”, diz o compositor.
 
Reconhecido como um dos grandes intelectuais do Brasil na atualidade, Safatle comenta a relação do pensamento com a música nesse novo álbum, em que o tempo está presente no título e na ideia.
 
“Toda forma de emancipação real passa necessariamente pela libertação da nossa experiência temporal. Uma das formas de sujeição a que estamos submetidos é como uma certa figura do tempo nos é imposta, impedindo que experienciemos a multiplicidade do tempo. É sempre o tempo do projeto, que organizamos uma linha, uma sequência de presente e futuro. Ou então o tempo instantâneo, no sentido de que nada ressoa. Isso pode parecer uma discussão relativamente abstrata, mas é brutalmente concreta”, afirma o filósofo, lembrando que as revoluções francesa (1789) e russa (1917) alteraram os calendários vigentes.





RUPTURA No entendimento dele, a música é uma forma de ruptura dessa relação com o tempo. “A música desestabiliza esse controle. O tempo musical é um tempo inquieto em relação à organização social do tempo. É um tempo insubmisso e é importante recuperar ou explorar isso em momentos como esse que vivemos atualmente”, diz. 
 
Para Safatle, há duas maneiras de pensar sobre como a música fala da vida social. “Uma que literalmente fala e traz questões, que não é o que eu faço. E outra, que é algo que só a música pode fazer, que é desestabilizar as estruturas da nossa sensibilidade. Ela estremece nossa sensibilidade de maneira que só ela faz. Quando a música trabalha isso de forma direta, ela tem sua força política mais forte”, argumenta.
 
O álbum completo ainda não tem previsão de data para lançamento. Os singles podem ser ouvidos nas plataformas digitais, incluindo o Sesc Digital.
 
Três peças para gestos ao piano Single de Vladimir Safatle Disponível nas plataformas digitais (foto: rReprodução)