Jornal Estado de Minas

ARTES VISUAIS

Artista que criou a escultura 'ferida vulva' explica sua obra


 
Uma obra de arte de 33 metros de altura, 16m de largura e 6m de profundidade já seria chamativa apenas por seu tamanho. Sendo ela a reprodução do órgão sexual feminino, feita em concreto armado e resina e instalada numa superfície rural, o impacto é ainda maior. Sobretudo se essa obra tiver sido produzida no contexto de uma sociedade estruturalmente patriarcal e com o objetivo de questioná-la por meio de sua própria existência. 




 
Inaugurada no último fim de semana na galeria a céu aberto Usina da Arte, em Água Preta, Zona da Mata Sul de Pernambuco, a instalação Diva, da artista plástica pernambucana Juliana Notari, virou assunto até no exterior.
 
A artista trabalhou com concreto armado e resina, num processo que levou 11 meses desde a concepção da obra até sua inauguração, no último fim de semana (foto: Juliana Notari/Divulgação)
 
 
Ao longo da segunda-feira (4), Notari recebeu ligações de jornalistas de diversos países, conforme comentou em conversa telefônica com a reportagem do Estado de Minas. Ainda no domingo (3), o jornal britânico The Guardian deu destaque em seu site para a notícia, com o seguinte título: Os diálogos da vagina: obra de arte de 33 metros atrai a ira da extrema-direita no Brasil.
 
Contudo, a representação da vagina não é inédita na arte (basta citar A origem do mundo, de Courbet, tela datada de 1866 e um dos principais destaques do museu d’Orsay, em Paris) nem tampouco na obra da pernambucana. Por que então a reação provocada pela Diva neste início de 2021 foi tão intensa? 
 
A artista pernambucana Juliana Notari e sua obra ao fundo (foto: Juliana Notari/Divulgação)
 
 
Juliana Notari faz questão de frisar que “não é apenas uma vulva. Se fosse, eu teria feito os grandes lábios, o clitóris. É uma ‘ferida vulva’”. O conceito talvez explique toda a repercussão.



“Tem a questão de trazer a violência que o corpo da mulher sofre ao longo da civilização no Ocidente. Desde as bruxas, que eram mulheres que tinham a ciência do próprio corpo. Foi tudo morto, queimado, violentado, tudo isso até hoje. A menstruação transformada em tabu e sujeira, e o corpo feminino domesticado, docilizado, com essa ideia da ‘bela, recatada e do lar’, submissa, mesmo com conquista de muitos direitos”, afirma a artista. Juliana Notari chama a atenção ainda para o aspecto simbólico de a instalação ser feita na terra.
 

Sagrado


“A vulva tem uma questão sexual sagrada. Sempre despertou o medo. Quando se junta essa coisa sexual, do sagrado, um tabu na sociedade, com a terra, que é a morte, por ser para onde vamos quando morremos, se torna um trabalho que lida com traumas, medos e feridas. Quando a ferida sai de um ambiente urbano e vai para a terra, aquela proporção toma uma dimensão que mexe com placas tectônicas do ser humano”, explica.
 
 
 
Desde que a divulgação da inauguração foi feita por Juliana em seu perfil no Instagram, seguido por 8,4 mil pessoas, viralizaram postagens sobre o tema nas redes sociais. Na própria publicação, foram 11,4 mil curtidas e mais de 3,2 mil comentários.




 
Alguns elogiavam a beleza da obra, enquanto outros atacavam o trabalho e também a artista.  O assunto logo virou pauta dos internautas mais engajados, tanto à direita quanto à esquerda, tornando-se um dos temas mais comentados da web. 
 

 
“Tomou uma proporção absurda. Muito agressiva. Mas não fico lendo, nem dá tempo, porque a própria repercussão deixou minha vida mais corrida”, diz Notari, que observa ainda que a coincidência do lançamento da instalação com a legalização do aborto na Argentina (aprovada pelo senado do país vizinho em 30 de dezembro) também aflorou os ânimos em relação a essa temática.
A artista, de 46 anos, já tinha experiência anterior em enfrentar reações agressivas do público sobre sua obra. Aconteceu na exibição da videoperformance Mimoso, de 2014, exibida também ano passado em São Paulo, na mostra À Nordeste. 




 
Nesse trabalho, a artista é amarrada, nua, a um búfalo chamado Mimoso e arrastada pela areia de uma praia. Ao saber que o animal seria castrado por seu criador no dia seguinte, ela decidiu comer o testículo retirado do animal e incorporar a ação à performance. 
 
O impacto causado pelas cenas, que mostram o sofrimento do animal, desagradou a muita gente. Porém, segundo ela, não tanto como agora. “Foi muito tenso ali, porque era em São Paulo, com muita visibilidade, num evento que tem uma proposta de desconstrução desse Nordeste estereotipado, todo esse contexto. Mas agora foi bem pior.”
 
Notari lembra ainda que a figura da “ferida vulva” não é nova em seu traba- lho. Segundo ela, desde 2003, com a performance Dra. Diva, apresentada na Galeria Vermelho, em São Paulo, e na École Supérieure d’Art d’Aix-en-Provence, na França, ela já esculpia as fendas em paredes usando um espéculo – aparelho utilizado na medicina para examinar o interior de uma cavidade do paciente, e muito empregado na ginecologia. 




 
Posteriormente, ainda houve o projeto fotográfico Spalt-me, de 2009, que espalhou fotografias da obra Dra. Diva por muros e paredes de ruas de Berlim, Veneza, Amsterdã e Aix-en-Provence. 

A recém lançada Diva surgiu depois de 11 meses de trabalho, entre a apresentação da proposta conceitual da obra e sua finalização, em um projeto de residência artística da Usina de Arte, em parceria com o Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães – Mamam (Recife). 
 
Contudo, a forma e sua relação com a causa feminina não foram o único motivo de polêmica. Em uma das fotos escolhidas para divulgar o trabalho, a artista, que é branca, aparece na imagem com trabalhores negros ao fundo, executando o projeto da instalação. Muitos internautas viram na imagem um exemplo do racismo estrutural do Brasil.  
 
Juliana Notari pondera e vê esse tipo de percepção como positiva. “Sabia que era um trabalho que causaria polêmica. Não nessa dimensão, que até na China, na Tailândia estão falando (sobre o assunto). Mas ele toca em muitas questões. A Zona da Mata pernambucana é o berço do patriarcado do Nordeste; no Brasil, da senzala e da formação histórica brasileira. A foto é criticada porque é o Brasil. Os trabalhadores negros são os mais precarizados mesmo, em todos os lugares. A foto mostra um processo que acontece, basta ir a qualquer canteiro de obras neste país e ver. É bom que tenha despertado isso, porque toma outro significado e reforça essa questão importante”, afirma. 
 
Em sua avaliação, a despeito da reação irada de determinados setores, “Diva ganha mais força, com certeza”, diante de tamanha repercussão. “A procura pela visitação à obra eu ainda não consegui mensurar, mas certamente gera mais curiosidade. Está tendo visibilidade e estou gostando, porque abre essas feridas históricas. Mesmo que eu tome porrada do lado de cá e do lado de lá, lido com esses traumas da sociedade brasileira e a questão feminina e racial. E crítica é isso, temos que aprender. O debate tem sido positivo”, diz a pernambucana.




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