Jornal Estado de Minas

LITERATURA

Brasil saúda os 100 anos da eterna Clarice Lispector

“Como é que você se sente quando lê meus livros? Aí você tem a medida de como é que me sinto quando escrevo”, devolveu Clarice Lispector a Olga Borelli quando perguntada sobre por que escrevia. Foi dessa maneira que a autora terminou a carta enviada à amiga e assistente, em 29 de setembro de 1975.





Milhares de pessoas vêm respondendo a essa pergunta nas últimas oito décadas. A estreia da escritora foi com o conto Triunfo, publicado em 1940 na revista PAN, e em livro com o romance Perto do coração selvagem, de 1943. As respostas – perplexidade, inquietude, melancolia, ou uma alegria por identificar, através dos escritos dela, a chave para questões que nos tocam – são múltiplas.

“Os meus livros não se preocupam com os fatos em si porque, para mim, o importante não são os fatos em si, mas as repercussões dos fatos no indivíduo”, escreveu Clarice na mesma missiva. Ao longo deste 2020, o centenário de nascimento da escritora vem levantando novas questões. Neste 10 de dezembro, dia de Clarice, a reunião de especialistas e fãs deverá dominar o meio digital.


MÚLTIPLA 

Clarice Lispector escreveu romances, crônicas, contos e livros infantis. Após sua morte, em 9 de dezembro de 1977, um dia antes de completar 57 anos, houve nova leva de obras, incluindo aí volumes dedicados a suas entrevistas e cartas (o volume Todas as cartas, lançado em setembro, reúne 284 correspondências da autora entre 1940 e 1970).





Desde novembro de 2019, a editora Rocco vem publicando edições comemorativas da obra completa dela. Com projeto gráfico do designer Victor Burton, as reedições trazem na capa recortes das telas assinadas por Clarice – que pintou 22 quadros em sua vida.

Neste mês do centenário, sai nova edição de A hora da estrela (1977), a única novela da escritora, publicada dois meses antes de sua morte. Um de seus livros mais populares, já ultrapassou a marca de 1 milhão de exemplares desde 1998, quando passou a ser editado pela Rocco.

A trágica história da migrante Macabéa é também o livro de literatura brasileira de autor clássico mais vendido em 2020. A edição comemorativa tem posfácio assinado pelo filho de Clarice, Paulo Gurgel Valente, que pela primeira vez escreve sobre a mãe.





Presente em 40 países, traduzida para 32 idiomas, essa autora está sempre gerando novos estudos e releituras. Dois livros de editoras mineiras chegam às livrarias neste mês. Editado pela Autêntica, Feliz aniversário, Clarice, organizado pelo jornalista mineiro Hugo Almeida, doutor em literatura brasileira, tem como base a primeira antologia de contos dela, Laços de família (1960).

Almeida convidou 26 autores para relerem os 13 contos daquela obra. O time é diverso – da escritora paulistana Anna Maria Martins, de 96 anos, à gaúcha Bruna Brönstrup, de 25, aqui estreando em livro. Além do organizador, autor de um dos textos, o volume reúne 11 mineiros, como Ana Cecília Carvalho, Letícia Malard, Guiomar de Grammont e Francisco de Morais Mendes.

“A diversidade de gerações e origem dos autores ajudou bastante na distribuição dos contos inspiradores. Há duas recriações de 12 dos 13 contos de Laços de família e três de Feliz aniversário. Em princípio, escolhi os contos de acordo com as características da obra ou tendência de cada convidado. Procurei fazer com que, sempre que possível, uma recriação fosse feminina e outra masculina, de ficcionistas de idades e estados distantes”, explica Almeida.





A escolha por recriar Laços de família deve-se tanto pelos méritos do livro – “todos os 13 contos da coletânea são antológicos”, afirma o organizador – quanto pelos 60 anos de sua publicação original. Passado tanto tempo, a obra permanece.

“Como a obra de todo autor clássico, a de Clarice Lispector não morre. Avessa à frivolidade, ela escreveu sobre a alma humana, a perplexidade do ato de viver, sobre a solidão. Clarice mescla a agudez da dor com a mansidão da alegria, sempre efêmera”, opina Almeida.

CRIAÇÃO 


Feliz aniversário, Clarice traz, além de textos inéditos, o capítulo “Gênese dos contos”, em que autores falam sobre o processo de criação do trabalho. “Admiro quem recria contos de grandes escritores sem muito do original, e ao mesmo tempo sem deixar de trazer algo do clima, das personagens, do estilo do conto inspirador. Quase todos os participantes da coletânea conseguiram essa proeza”, acrescenta o organizador.





De seara distinta é o volume Escrever de ouvido: Clarice Lispector e os romances da escuta (Relicário Edições), da paulista Marília Librandi, professora do Departamento de Espanhol e Português na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos.

A obra foi lançada originalmente em inglês há dois anos, pela editora da Universidade de Toronto. A edição brasileira, traduzida por Jamille Pinheiro Dias e Sheyla Miranda, traz orelha de José Miguel Wisnik, que destacou: “No início, parece estar o impossível: escutar a própria língua”.

Marília partiu de sua própria experiência como docente há 11 anos em universidades norte-americanas para iniciar o estudo. “Estava dando um curso sobre A hora da estrela e citei uma frase de Rodrigo S. M. (narrador da história), em que ele se pergunta como escreve. Ele próprio responde que escreve de ouvido. Como estava na mesma vivência, imersa em uma língua estrangeira, comecei a pesquisar o que queria dizer ‘escrever de ouvido’”, ela conta.





OUVIDO 


Para a acadêmica, a escrita de ouvido tem, em primeiro lugar, relação direta com tocar um instrumento de ouvido ou aprender língua estrangeira da mesma maneira. “Isso cria um paradoxo, pois a gente escreve com palavras, mas lê com os olhos. Então, primeiramente, temos de aceitar o improviso, o erro, o equívoco como parte da escrita. Você vai escrevendo com a sua intuição, meio às cegas.”

Para Marília, a escrita de Clarice vai ao encontro dessa relação, pois ela “escreve a entrelinha”. “Uma imagem que ela usa muito, e pede para que os leitores usem, é escutar o que está entre as linhas, ou seja, o que ela diz não está no que diz, mas no intervalo. Outra consequência do que aprendi lendo Clarice é você escrever ouvindo o silêncio da escrita.”

A professora desenvolve o conceito de escrever de ouvido em diferentes imagens da obra clariceana. “Em A paixão segundo G.H., quando a personagem entra no quarto da empregada e fica em contato com a barata, ela escuta uma vibração silenciosa. Há inclusive a frase ‘só a minha parte auricular sentia’, que é como uma fala pelo ouvido. A questão ainda tem uma consequência social interessante, de deixar de ouvir a si mesmo a passar a ouvir os outros, como a Macabéa, personagem que não tem voz”, conclui ela.





Marília Librandi está à frente do projeto Clarice 100 Ears (ouvidos em português, uma brincadeira com years, ou seja, anos), de vídeos e podcasts, reunidos no site clarice.princeton.edu.

A HORA DA ESTRELA 
(EDIÇÃO COMEMORATIVA)
.De Clarice Lispector 
.Rocco
.88 páginas
.R$ 29,90
(rocco.com.br)

ESCREVER DE OUVIDO: CLARICE LISPECTOR E OS ROMANCES DA ESCUTA
.De Marília Librandi
.Relicário
.284 páginas
.R$ 49,50
(relicarioedicoes.com)

FELIZ ANIVERSÁRIO, CLARICE
.Organização de Hugo Almeida
.Autêntica
.272 páginas
.R$ 24,90
(grupoautentica.com.br)

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