Jornal Estado de Minas

LITERATURA

'A casa comum' mostra a separação como possibilidade de acordar

Ana Cecília Carvalho*
Especial para o Estado de Minas


A casa comum é o primeiro romance de Kaio Carmona e também o volume que inaugura a Coleção Desassossego, da Editora Quixote %2b Do. Conhecido por uma obra poética na qual se destacam Compêndio de amor, Para quando e a antologia Entrelinhas, entremontes: versos contemporâneos, além de Um lírico dos tempos, Carmona é uma das vozes mais importantes da poesia brasileira da atualidade.





Para A casa comum, o autor traz a sua experiência com a escrita poética e o faz com o talento, a consistência, a maturidade e a profundidade daqueles que conhecem bem a natureza dos dramas e das paixões humanas. 

Esse olhar detido sobre tudo que de outro modo passaria despercebido é o que torna A casa comum uma obra monumental, embora breve em número de páginas. Desde o início, o leitor descobre que não há nada comum em A casa comum. Tudo ali é um convite para reflexão. Ao aceitarmos, mergulhamos em uma experiência que nos tornará melhores. 

Nesse livro inquietante, ou melhor, “desassossegado”, o autor descreve a história de uma mulher e um homem que se separam por decisão dela. Ficção e prosa poética se juntam para nos fazer pensar sobre a natureza do amor e seus desfechos (ou percalços), já que o livro mostra que, em uma parceria amorosa, nada é como se imaginou ou se desejou. 





Como já observaram não apenas os terapeutas de casal, tudo que agora contribui para a separação já estava lá, desde sempre, em uma situação mais ou menos assim: o que um dia atraiu e uniu os amantes é exatamente o que os separa no futuro. Talvez não fosse equivocado dizer que essa situação se aproxima da noção grega de tragédia, pois trágico é tudo aquilo que é previsível, mas, infelizmente, não pode ser evitado. 
 
Esse aspecto evoca a metáfora da Caixa preta do israelense Amos Oz. Depois de separado o casal, cada um tem de se haver com o que causou a ruptura e ambos constatam que todos os elementos para o desastre já estavam lá, e - surpresa! - eram os mesmos que antes faziam a engrenagem funcionar. Mas então o que terá se tornado disfuncional em uma parceria amorosa?

AUTÓPSIA 
Para responder a esta questão seria necessário que cada um se esforçasse para fazer uma espécie de autópsia da parceria amorosa. Nessa tentativa, descobririam muitas coisas das quais não se davam conta naquilo que de fato atraiu um ao outro para que então a separação se desdobrasse em um esforço necessário de diferenciação.  

Talvez muitos relacionamentos fracassem por não terem os parceiros se permitido passar por esse tempo da diferenciação, de exame da própria posição que cada um ocupava na parceria. Talvez por isso existam parcerias que se tornam pactos intermináveis na infelicidade, mesmo depois de consumado o divórcio, quando então vemos que os dois sujeitos continuam se perseguindo pelo ódio e pelas provocações mútuas, em uma espécie de “gozo mortífero” na separação. 

Sem falar em outras atitudes drásticas que são os crimes “passionais”, ou naquelas escolhas feitas precipitadamente depois de uma separação “mal resolvida”, nas quais aparecem os piores aspectos do relacionamento anterior, com o novo mostrando ser uma caricatura do antigo. A ideia de que “aquilo que não compreendemos, tendemos a repetir” parece pertinente aqui.





Além dessas dificuldades, existe o sofrimento gerado pela dificuldade de cada um em lidar com o luto que uma separação envolve, o sentimento de perda que ela acarreta (a perda do outro e, sobretudo, a perda de si mesmo como objeto amoroso).

Uma das dores mais difíceis de se lidar em uma separação, ainda que consensual, é ter de enfrentar o fato de que eu não existo mais no desejo do outro. O narcisismo ferido dói e, assim, mobiliza certas defesas que, em geral, incluem provocações no outro, em apelos mais ou menos estridentes para me reassegurar da minha própria importância, de que ainda esteja vivo no coração dele ou dela. 

O psicanalista Igor Caruso, em A separação dos amantes: uma fenomenologia da morte, aborda a situação dos que decidem se separar enquanto ainda se amam e o luto que se segue a essa decisão. Cada um dos parceiros deve descobrir o que de fato foi perdido na separação. Para completar esse luto e seguir adiante, cada um tem de estar disposto a abrir mão da pretensão de continuar sendo o objeto de amor do outro. 





Em suma: separar não é o mesmo que se diferenciar. A diferenciação envolve um trabalho interno muito diferente. Quando me diferencio, não apenas tomo distância de tudo que idealizo em relação ao outro, mas também consigo uma visão ampliada sobre mim mesmo, sobre quem eu era antes e durante a parceria e sobre o que eu projeto para a minha vida daí em diante. 

MUNDOS INTERNOS 
Nesse exame, é preciso ver se as diferenças entre mim e o outro fizeram expandir ou diminuir os mundos de cada um. Isto é, segundo me parece, o que a personagem da mulher em A casa comum se esforça para fazer, quando sai de casa e caminha pelo bairro, em uma “viagem” cujo destino é o reencontro consigo mesma. Ou seja, à medida em que ela se afasta do parceiro e o enxerga “de longe”, ela termina por ver a si mesma, talvez pela primeira vez na vida.   

A bela epígrafe de Goethe em Afinidades eletivas (o “momento feliz em que os dois amantes despertarão juntos”) contida em A casa comum merece um comentário. Sob a luz dessa referência, a metáfora da “casa comum” alude à simetria buscada em uma parceria amorosa: a ideia de que, um dia, os dois amantes despertarão juntos do sono em que se encontravam, alheios ao fato de que dormiam e, enquanto dormiam, sonhavam, realizando desejos (pois essa é a função dos sonhos, segundo Freud), os dois imersos nas próprias fantasias de que o outro fosse tudo o que eu sempre quis, de que eu fosse tudo o que o outro idealizado sempre quis. A situação dos amantes do romance de Kaio Carmona revira tudo isso. A casa comum é uma história de amor em que o desamor surge como possibilidade de acordar.

A diferenciação às vezes acontece com a separação, tal como em A casa comum, quando os dois parceiros já não serão os mesmos que eram antes do rompimento. Permanecerão juntos mas diferentes, ou melhor, diferenciados, ou vão se separar depois desse esforço? Nem o analista pode dizer o que será, porque o processo de diferenciação de cada parceiro muda tudo a respeito do lugar que cada um ocupava antes na parceria e na vida. Com o que se rompe, afinal, em uma separação? O que permite e o que faz romper o apego em uma relação amorosa?

Estas são as perguntas que as personagens de Carmona se esforçam para formular e responder. A mulher reconhece que precisa de um tempo, pois essas coisas levam tempo, a despeito da pressa que muitos têm para se verem livres do sofrimento que tudo isso envolve.





Enquanto o homem dirige interrogações exaltadas e indignadas para o mundo abstrato dos conceitos sobre o amor, talvez na esperança de que elas acolham ou deem sentido ao fato de que ele foi deixado, ela, em sua caminhada, logo descobre que a ruptura é em relação às próprias fantasias, por exemplo, em relação ao que ela idealizava sobre o seu parceiro e sobre si mesma no casamento, mas é também uma ruptura em relação às posições que ocupava na vida. Ela rompe para se encontrar. 

PARCERIA AMOROSA 
A decisão é expressa na carta escrita a mão, que abre o romance, e no ato de sair da casa: “Estou indo embora”. Mas ir-se embora envolve a retomada da história da sua própria vida e o resgate e a ressignificação dos elementos que a fizeram ser um certo tipo de sujeito antes, durante, dentro e fora de uma parceria amorosa. 

Os psicanalistas descreveriam esse momento como uma “retificação subjetiva”, que é uma tomada de posição em relação ao próprio desejo e em relação ao desejo do outro e que envolve a própria responsabilização em cada decisão que se toma. Evoco, aqui, a reflexão da escritora e psicanalista Lívia Garcia-Roza, quando ela diz: “Na relação com o outro, precisamos nos dizer com quais lacunas conseguimos conviver”.





“Não vamos nos machucar mais”, são as palavras que a mulher escreve na carta. Uma decisão que rompe o pacto que ela e o homem mantinham. Feita a “autópsia” do relacionamento terminado, o “machucar-se mutuamente” mostra ter sido um elemento chave para que a parceria tivesse se tornado disfuncional. 

DISPOSIÇÃO 
Nesse ponto talvez houvesse lugar para outra interrogação: “Havia espaço e disposição para o cuidado mútuo nesse casamento?”. Ou seja, de que modo se fazia o cuidado com o outro? Esse cuidado era reconhecido?

Se Lacan estava certo quando disse que “amar é dar o que não se tem”, talvez fosse bom pensar que, na assimetria do amor, quem recebe o que é dado gratuitamente pelo outro deve estar disposto a esboçar um gesto de reconhecimento.

Se isso não acontece, são grandes as chances para o deserto afetivo se instalar. Contudo, aquele que dá o que não tem talvez tenha de abrir mão do desejo de ser reconhecido por aquilo que ofertou. 





Na situação tecida em A casa comum, se o homem e a mulher se encontrarem por acaso no momento em que ela voltar para buscar o carro estacionado na porta da casa, talvez nesse mesmo momento, no final da tarde, em que ele sai depois de guardar no bolso o bilhete de despedida amassado, os dois já não serão os mesmos que eram antes. Tudo terá se transformado. Estarão prontos tanto para se separarem quanto para se reunirem, se de fato agora souberem o que e quem estarão deixando para trás.
 
* Ana Cecília Carvalho é escritora e psicanalista. Publicou a Trilogia da Inquietude pela Quixote Do.

A casa comum
Kaio Carmona
Quixote Do (74 págs.)
$ 49,90