Jornal Estado de Minas

Filósofos refletem sobre o efeito do coronavírus na sociedade

(foto: Wikipedia/Reprodução)
Ao longo da história, sobretudo em seus momentos mais marcantes, o pensamento crítico sempre ajudou a elucidar os acontecimentos, oferecendo novos entendimentos e reflexões, em contraposição ao pragmatismo dos fatos. Nos últimos meses, quando a humanidade se deparou com um evento de grande complexidade e de impacto direto na ordem global, não foi diferente. Mesmo com o imediatismo dos acontecimentos relacionados à pandemia da COVID-19, a filosofia tem reagido com ideias e posicionamentos.



Desde que o isolamento social começou a se tornar realidade para boa parte da população mundial e sobravam incertezas sobre o vírus capaz de matar milhares por dia, os pensadores mais importantes da atualidade já se pronunciavam. O israelense Yuval Harari, autor do best-seller Sapiens – Uma breve história da humanidade, e tido como grande guru dos tempos atuais, foi procurado pelos principais veículos de comunicação do mundo para compartilhar seus entendimentos sobre o tema.

Ao contrário das visões mais pessimistas que anunciam o caos, Harari vem apresentando argumentos mais alentadores sobre o futuro. Em entrevista à BBC, ele declarou que “a humanidade tem tudo de que precisa para conter e superar essa epidemia. Não é a Idade Média. Não é a peste negra. Não é como se as pessoas estivessem morrendo e não tivéssemos ideia do que as está matando e o que pode ser feito sobre isso”. Ele ainda rechaça perspectivas sobre a permanência de um estado de isolamento social para o futuro das relações humanas, pós-pandemia. “É muito difícil para nós, como animais sociais. Acredito que quando a crise acabar, as pessoas sentirão ainda mais a necessidade de estabelecer vínculos sociais. Não creio que possa haver uma mudança fundamental na natureza humana."

Porém, o filósofo e historiador ressalta a dimensão política da pandemia. “Entendemos completamente o que estamos enfrentando e temos a tecnologia, temos o poder econômico para superar isso. A pergunta é: como usamos esses poderes? E essa é principalmente uma questão política”, disse. Harari ainda alerta: “Talvez as duas opções mais importantes sejam se enfrentamos esta crise por meio do isolamento nacionalista ou se enfrentamos através da cooperação e solidariedade internacionais”. E acrescenta: “Dentro de um país, as opções são tentarmos superar a crise por meio de controle e vigilância totalitário e centralizado ou por meio da solidariedade social e do empoderamento dos cidadãos”.


(foto: BoiTempo/DivulgaÇÃO )

No fim de maio, passados dois meses de pandemia, tempo suficiente para muitos governantes apostarem em comportamentos controversos, em entrevista à revista Veja, Harari afirmou que “as tecnologias de vigilância desenvolvidas nos últimos anos serão extremamente úteis para permitir que as pessoas possam retornar ao trabalho ou à escola com segurança. Se você é capaz de monitorar pessoas e avisá-las da proximidade de infectados, a volta a uma situação normal pode ser acelerada. Mas tudo tem de ser feito com absoluta ponderação. Precisamos ser muito cuidadosos com a vigilância. Se instituirmos o sistema e as leis erradas, a tecnologia nos ajudará a combater a epidemia, mas também poderá destruir a democracia e nossas liberdades. Já estamos vendo em vários países a tentativa de usar a situação para estabelecer regimes autoritários”.

Os desdobramentos da COVID-19 em espectros políticos e sociais ocuparam a mente de outros filósofos e pensadores contemporâneos. Alguns deles publicaram artigos em uma coletânea chamada Sopa de Wuhan – Pensamiento contemporáneo en tiempos de pandemia, lançado em abril pela Pablo Amadeo, com o apoio da Editorial Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio (Aspo). A edição, disponível para download gratuito em e-book, reúne textos (em espanhol) de Giorgio Agamben, Slavoj Zizek, Judith Butler e Alain Badiou, entre outros.

O italiano Agamben defendeu, em A invenção de uma epidemia (escrito em fevereiro), incluída na coletânea, a ideia de uma supervalorização midiática da COVID-19, que justifica o que chama de “medidas frenéticas, irracionais e completamente injustificadas de emergência”. Ele entende que tudo faz parte de uma “tendência crescente em utilizar o Estado de exceção como paradigma normal de governo”. Sua ideia foi confrontada por outros filósofos.



DISCRIMINAÇÃO 

Já a norte-americana Judith Butler, considerada uma das principais teóricas do feminismo, escreveu ainda em março sobre sua preocupação em como o vírus agravaria desigualdades dentro da sociedade capitalista. Segundo ela, as estruturas econômicas sobre as quais estamos submetidos impediriam que a doença fosse um risco semelhante para toda a humanidade, capaz de gerar uma preocupação e uma colaboração uníssonas.

“A desigualdade social e econômica garantirá a discriminação do vírus. O vírus por si só não discrimina, mas nós humanos certamente o fazemos, moldados e movidos como somos pelos poderes casados do nacionalismo, do racismo, da xenofobia e do capitalismo. Parece provável que passaremos a ver no próximo ano um cenário doloroso no qual algumas criaturas humanas afirmam seu direito de viver ao custo de outras, reinscrevendo a distinção espúria entre vidas passíveis e não passíveis de luto, isto é, entre aqueles que devem ser protegidos contra a morte a qualquer custo e aqueles cujas vidas são consideradas não valerem o bastante para ser salvaguardadas contra a doença e a morte”, publicou. Nos meses seguintes, as estatísticas nos Estados Unidos mostravam, por exemplo, que as mortes por COVID-19 chegaram a ser três vezes mais numerosas entre a população negra.

O franco-marroquino Alain Badiou também aponta para contradições envolvendo o poder e o capitalismo no que se imaginaria como combate à doença em escala global, evidenciando um tom de descrença em grandes mudanças. No ensaio Sobre a situação epidêmica, de março, ele frisa a necessidade do isolamento social como forma mais elementar de evitar o contágio, mas se dizia surpreso com “declarações peremptórias, apelos patéticos e acusações enfáticas assumem formas diferentes, mas todos compartilham um curioso desprezo pela formidável simplicidade e ausência de novidade da atual situação epidêmica”, que já ouvia naquela época.



“Alguns são desnecessariamente servis diante dos poderes existentes, que na verdade estão simplesmente fazendo o que são obrigados pela natureza do fenômeno. Outros invocam o planeta e sua mística, o que não ajuda em nada. Alguns colocam toda a culpa no infeliz Macron (Emmanuel Macron, presidente da França), que simplesmente está fazendo, e não pior do que outro, seu trabalho como chefe de Estado em tempos de guerra ou epidemia. Outros fazem tom e choram por um evento fundador de uma revolução sem precedentes, cuja relação com o extermínio de um vírus permanece opaca – algo pelo qual nossos ‘revolucionários’ não estão propondo nenhum novo meio. Alguns afundam no pessimismo apocalíptico. Outros estão frustrados porque o 'eu primeiro', a regra de ouro da ideologia contemporânea, neste caso é desprovido de interesse, não fornece socorro e pode até parecer cúmplice de um prolongamento indefinido do mal”, escreveu.

SLOGANS INCÔMODOS

 Badiou pondera que “no caso de uma guerra entre países, o Estado deve impor, não apenas às massas populares, como é de se esperar, mas à própria burguesia, restrições consideráveis, tudo para salvar o capitalismo local”, lembrando que “algumas indústrias são quase nacionalizadas em prol de uma produção desenfreada de armamentos que não gera imediatamente nenhuma mais-valia monetária. Muitos burgueses são mobilizados como oficiais e expostos à morte. Os cientistas trabalham noite e dia para inventar novas armas. Inúmeros intelectuais e artistas são compelidos a fornecer propaganda nacional, etc.”, mas que no enfrentamento da pandemia tal ideia gerava entranhamento.

“A lição a ser tirada disso é clara: a epidemia em andamento não terá, como epidemia, nenhuma consequência política digna de nota em um país como a França. Mesmo supondo que nossa burguesia – à luz dos slogans incômodos, frágeis e difusos – acredite que chegou o momento de livrar-se de Macron, isso de modo algum representará qualquer mudança digna de nota. Os candidatos 'politicamente corretos' já estão esperando nos bastidores, assim como os defensores da forma mais mofada de um 'nacionalismo' tão obsoleto quanto repugnante”, escreveu o filósofo.