Jornal Estado de Minas

Sérgio Augusto reúne suas críticas no livro 'Vai começar a sessão'

Cena de Um corpo que cai (1958), de Alfred Hitchcock, cuja relação com as personagens femininas e as atrizes o autor analisa no livro (foto: Hitchcock Productions/Divulgação)
Ao menos uma vez por ano, Sérgio Augusto, um dos principais jornalistas culturais do país, assiste ao musical Cantando na chuva, que Gene Kelly e Stanley Donen dirigiram em 1952. No mínimo, uma sessão particular. "É meu filme favorito. Um primor de realização, um roteiro fabuloso. Ao final, sempre me sinto mais feliz", conta o autor de Vai começar a sessão (Companhia das Letras), coletânea de escritos do jornalista sobre o cinema, desde os clássicos até blockbusters.


São 89 artigos, dos quais 83 saíram no jornal O Estado de S.Paulo. Dada a profusão de textos que coleciona na carreira ("Afinal, já são 55 anos de jornalismo", avisa), Sérgio preferiu fazer um recorte, selecionando trabalhos publicados apenas nos anos 2000. Assim, o primeiro artigo do livro (Sexo, mentiras e celuloide) saiu em 13 de janeiro de 2000, e o último, Stefan Zweig por Kubrick, traz como data 30 de julho de 2018.

"Sérgio é um espectador onívoro, que vai do tiro-porrada-e-bomba de Duro de matar 4.0 à análise das muitas cenas em que Jean-Luc Godard faz seus atores aparecerem mergulhados em livros", observa o jornalista Paulo Roberto Pires no prefácio da edição, notando, de forma arguta, que o crítico é uma espécie de filho intelectual de um estranho casal formado por duas revistas clássicas – Cahiers du Cinéma e The New Yorker. "Do lado francês, trouxe o culto ao cinema como uma mistura singular de razão e sensibilidade, um olho na peripécia intelectual, outro no prazer inegociável da sala escura. Dos parentes americanos, herdou a tradição de um tipo de ensaísmo jornalístico que combina clareza e sofisticação com uma assombrosa capacidade de processar referências e invulgar talento para recombiná-las."

TRAUMA 

O ator James Dean em cena de Vidas amargas (1955), de Elia Kazan, um dos três cineastas favoritos do autor (foto: Warner Bros./Divulgação)
O cinema sempre esteve presente na rotina de Sérgio Augusto. Ele conta que, quando menino, a mãe o levava em várias sessões. O hoje crítico não se lembra de qual foi o primeiro longa que viu na vida, mas se recorda com detalhes do primeiro trauma: quando assistiu a Bambi, animação de Walt Disney de 1942, cujas cenas de violência, que usam armas de fogo, ainda são impactantes. "Entrei em um pranto compulsivo, minha mãe foi obrigada a me tirar do cinema. Foi um trauma de geração internacional", comenta.



O tema crucial do desenho, aliás, é também o que mais o toca em se tratando de cinema. "Rejeição é um assunto muito delicado e inspirou cenas belíssimas", conta. "Ainda fico emocionado quando Adam (Raymond Massey) recusa o dinheiro ofertado pelo filho, Carl (James Dean), em Vidas amargas, filme dirigido em 1955 por Elia Kazan. Talvez eu tenha dado uma dimensão maior, mas o fato é que é um momento especial do cinema.”

O universo cinematográfico é formado por verdadeiros gênios da sétima arte, o que dificulta a eleição dos me- lhores. Mesmo assim, uma tríade forma, na opinião do crítico Sérgio Augusto, o seu Olimpo: os cineastas Alfred Hitchcock, John Ford e Elia Kazan. E, sem pestanejar, ele aponta as obras desses diretores que lhe são mais caras: Vertigo – Um corpo que cai, Rastros de ódio e Vidas amargas, respectivamente.

"Hitchcock é um dos cineastas mais complexos de todos os tempos", observa ele, fascinado tanto pela forma como o diretor inglês se relacionava com seus elencos (notadamente os femininos) e também com a relação de Hitch com a literatura, em especial alguns escritores. Sobre o primeiro tema, Sérgio nota que o diretor inglês não era um tanto ou quanto sádico com suas atrizes apenas, mas também com as figuras femininas de suas fantasias cinematográficas.



Afinal, basta lembrar de Lisa, Madeleine, Marion e Marnie, quatro de algumas das mais representativas personagens de sua obra. "Lisa é a modelo interpretada por Grace Kelly em Janela indiscreta (1954); Madeleine é a mulher que ‘morre’ duas vezes em Um corpo que cai (1958); Marion é a ladra encarnada por Janet Leigh em Psicose (1960); e Marnie, a cleptomaníaca vivida por Tippi Hedren em Marnie, confissões de uma ladra (1964)", anota ele no artigo Hitchcock e as mulheres que sofriam demais. "Lisa e Marnie, afinal, se dão bem; mas Marion acaba punida pela sanha homicida de Norman Bates; e Madeleine despenca duas vezes do campanário da Missão de San Juan Bautista, a segunda com o corpo de Kim Novak."

Já a relação de Hitchcock com a escrita inspira um dos melhores artigos do livro, ainda que uma eleição desse tipo não seja fácil – com o divertido título de Hitchcov & Nabocock, Sérgio Augusto mostra como o cineasta e o escritor naturalizado americano Vladimir Nabokov tinham almas irmãs. "O cineasta e o escritor mantiveram contato, invariavelmente, por telefone, até pelo menos o final dos anos 1960, quando Nabokov se viu tentado a escrever o roteiro (adaptado) de Frenesi (1972), que compromissos inadiáveis o impediram de levar adiante. Anthony Shaffer fez um ótimo trabalho, mas a hipótese de um script elaborado por Nabokov até hoje excita minha curiosidade", escreve.

O cronista se questiona, em seguida, sobre a quantidade de filmes intrincados, complexos e eletrizantes que os dois artistas poderiam ter feito em parceria. Ele lembra um ensaio de James A. Davidson, o primeiro e o único crítico a especular sobre as "afinidades menos supérfluas e exteriores entre Hitchcock e Nabokov, desde a influência que sobre os dois e suas obras exerceram Kafka e certos autores do século 19, como Edgar Allan Poe e Robert Louis Stevenson. Ambos devoraram obras dos autores na juventude, até o pronunciado gosto por ludibriar espectadores e leitores, brincar com os gêneros (Fogo pálido, de Nabokov, é uma paródia da literatura detetivesca como Psicose, uma paródia do filme de terror) e deleitar-se com autorreferências".



O cinema se torna ainda mais fascinante, sob o olhar de Sérgio Augusto, especialmente quando se atém a detalhes que engrandecem o que seria diminuto. Cidadão Kane, por exemplo, o longa dirigido e interpretado por Orson Welles em 1941, considerado por inúmeros críticos o principal filme da história do cinema: a primeira vez que Sérgio teve contato com esse trabalho foi por meio de uma foto. "Uma revista portuguesa chamada Filme trazia uma imagem que se tornou icônica – a de Kane (Welles) discursando em um palanque e à frente de uma enorme foto com sua imagem", relembra. "Foi graças a uma única imagem, um plano fixo, que tive a noção de como seria revolucionária a linguagem desse longa."

Apesar de admirar aquele trio de cineastas (Hitchcock, Ford e Kazan), Sérgio não desconhece as qualidades de vários outros. Stanley Kubrick é um exemplo. Considerado por ele como um "diretor esquisito", o inglês deixou verdadeiras obras-primas, mas o crítico gosta de se lembrar de duas. Uma delas é Nascido para matar (Full metal jacket), de 1987. Baseado no livro The short timers, de Gustav Hasford, trata-se de um filme de guerra em que o combate é o menos importante – a brutalidade está na preparação dos soldados e não no campo de batalha. "O filme é impactante justamente por apresentar o pior antes das cenas de guerra, quando um rapaz enlouquece depois de sofrer no treinamento comandado por um superior."

A outra é Dr. Fantástico, de 1964, libelo antimilitar em que Kubrick exerce sua capacidade de ironia ao apresentar um mundo governado por generais malucos, presidentes frágeis e líderes mulherengos e beberrões, tão incompetentes que o fim do mundo está sempre por um fio. "Um dos grandes méritos do filme está no roteiro de Terry Southern, dono de um humor devastador e que não tinha limites para apresentar os mais graves problemas da personalidade humana", observa Sérgio, que, no quesito de roteiros, aponta o de Chinatown como exemplo de precisão. Dirigido por Roman Polanski em 1974, o longa acompanha um detetive particular que se vê envolvido em uma rede de corrupção e assassinatos. "É uma escrita tão perfeita que se transformou em exemplo nas escolas de cinema."  

Vai começar a sessão – Ensaios sobre cinema
Sérgio Augusto
Companhia das Letras (440 págs.)
R$ 89,90