Como naqueles grafismos geométricos de artefato indígena, A febre coloca tudo em um plano ordenado. No cotidiano do trabalho num porto de cargas, o protagonista da etnia desano Justino (Regis Myrupu, em boa performance) se vê espremido, mera peça de um meio mecanizado. Preenche, infimamente, os enquadramentos do filme, como sombra em meio à perfeição dos quadrados formados pelos contêineres de carga, sob a vigilância dele. Até mesmo o trato, justo o segmento dos recursos humanos da empresa em que trabalha, endossa o tom monetizado de sua sobrevida que transcorre nos arredores de Manaus.
Mas é ao descer do ônibus, passada a labuta diária, que ele renova a vida. Desaparece, por exemplo, o incômodo junto ao inconveniente novo colega de trabalho Wanderlei (Lourinelson Wladmir), que, com a sutileza de ex-capataz, não percebe Justino como um “índio de verdade”. Numa linha dissidente das recentes ficções (com temas de indígenas) Los silencios e Antes o tempo não acabava, o longa A febre é gestado na singeleza e num grau de verossimilhança afiado que não comporta grandes voos. Jantares ao redor da mesa com familiares e pequenos encontros revigoram a felicidade de Justino.
A simplicidade estabelecida pelo longa, coprodução que integrou França, Alemanha e Brasil, se prova com apelo universal – ele foi premiado no Festival de Locarno (Suíça). Numa das cenas mais impactantes, estabelece-se o grau de humanidade representado pelo cinema de Maya Da-Rin: uma senhora indígena agoniza e se mostra grata pelo auxílio, em meio a calafrios, junto ao ambiente branco. À beira da cama, a enfermeira Vanessa (Rosa Peixoto) traz esperança e mais um dado sobre a vida de Justino: é a filha dele, e certamente a maior razão de prosseguir, num cotidiano bem-aquietado.
Enquanto limitações – e uma certa inconformidade com o mundo branco (ele reprova, em muitos instantes, “a comida de supermercado”) – desabonam maiores planos para Justino, Vanessa vê a oportunidade ser aberta uma vaga na Universidade de Brasília. Optando pela linearidade, a montadora Karen Akerman (de O processo e A sombra do pai) mostra a destreza de respeitar o tempo da formulação do destino do protagonista. A direção de arte bem dimensionada projeta o bom trabalho de Ana Paula Cardoso. “Se for importante, vá, filha”, pontua Justino, ainda abalado pelos efeitos da doença com quê misterioso.
Com a saudade antecipada, o protagonista estabelece, em cena, um paralelo com um dos sonhos que tem: a carcaça de animal cujo coração ainda pulsa. Aguçado por valores em que acredita – numa das melhores passagens, com o neto (e herdeiro) no colo, Justino imprime o dom da palavra e a riqueza da linguagem oral –, e saudoso do roçado e da aldeia, caberá a ele abraçar uma trajetória coerente.